Quando
usamos a palavra ayllu nos dias atuais, logo se pensa num povoado ou mais
propriamente num território demarcado. No século XVI, o ayllu representava a
forma de organização de uma população que vivia dispersa e cuja identidade se
dava pelos laços de parentesco. Sendo assim, podemos perceber que de acordo com
as crônicas, o mundo andino deve ser analisado em dois momentos importantes,
antes e durante as instalações das reduções toladanas ocorridas entre as
décadas de 1560 e 1570. Num primeiro momento, o ayllu era o símbolo da união de
uma família extensa, já durante as reduções, os nativos foram reagrupados em
assentamentos para servirem de mão-de-obra de fácil acesso e controle. Não
foram poucos os casos em que diferentes ayllus terminaram unidos em uma única
redução, o que gerou sérios problemas. Sendo assim, podemos perceber que o
entendimento do mundo andino por parte dos espanhóis nem sempre correspondeu à
simbologia indígena.
Uma
das primeiras descrições que temos sobre o ayllu está na Visita de 1540 à etnia
de Jayanca concentrada na costa norte do Peru, que publicou Waldemar Espinoza Soriano[1].
O visitador Sebastián de la Gama
viu centenas de fazendas, assentamentos, povoados e casas dentro de um raio de
duas léguas em relação à residência do curaca. Muitos destes centros
habitacionais e pequenos povoados, cerca de 250, foram abandonados ou
destruídos. O visitador enumerou a população e concluiu que havia mais ou menos
4.000 tributários. Mas, conversando com o curaca, percebeu que também havia centenas
de tributários seus na serra, que haviam ido para lá em tempos do pai do curaca, com a finalidade de prover o grupo com
alimentos distintos dos da costa. Isso era normal na história dos Andes, um
mesmo ayllu podia estar disperso por diferentes locais[2].
O
que unia essa gente dispersa por diferentes campos era a crença de que todos
eram filhos do mesmo ancestral a quem cultuavam. Estes estavam todos sujeitos
ao curaca e adoravam seus antepassados, encontrando-se em festas durante o ano.
Essas cerimônias eram compostas por sacrifícios de comidas, purificação
pessoal, cantos e danças e as pessoas consumiam grande quantidade de chicha e carne de animais sacrificados.
Tais rituais de reciprocidade e redistribuição reforçavam as alianças entre
essa gente, criando uma identidade.
Encabeçando
essas atividades estava o curaca, que além de organizar a mão-de-obra
para servir ao Inca (e depois aos espanhóis), tinha a responsabilidade de
manter o culto aos seus antepassados que lhes haviam dado origem. Um curaca era
eleito por ser considerado o mais apto, hábil e capaz entre todos os outros
candidatos. Pertencia à linhagem dos fundadores do ayllu, o que lhe dava
o direito de ser o “dono de Índios”[3].
Como
representante do culto ancestral, o curaca visitava sua gente pedindo sua
ajuda para organizar a mão-de-obra com a finalidade de manter os edifícios e
espaços dedicados ao culto, cultivar a terra e cuidar dos animais que seriam
sacrificados. Por tudo isso, o curaca era considerado algo mais que uma
simples autoridade secular e política.
Sua identificação com o sagrado era tão grande, que um curacazgo era composto pelo curaca e as pessoas que participavam do
culto aos seus antepassados.
As
pessoas se identificavam com seu curaca e sua história, não importava o local de sua residência.
Por isso, era comum encontrar entre os sujeitos de um curaca pessoas que
estavam ligadas a outro curaca e a isso se denomina “territorialidade
salpicada” ou “descontínua”[4].
Nos
Andes não havia propriedade privada, todos tinham direito a cultivar quanta
terra pudessem e o tempo que quisessem. As pessoas só tinham direito exclusivo
aos bens que plantavam com a sua semente e sua mão-de-obra. As casas também
pertenciam a quem as construía, mas não o terreno onde estavam localizadas. Por
causa da falta de propriedade privada, podemos dizer que a população andina
antes de 1532 vivia em assentamentos cuja ocupação era descontínua, sendo
possível encontrar pessoas de ayllus diferentes compartilhando o mesmo
espaço.
O
poder do curaca era flexível, pois não existia um território com
fronteiras estáveis e fixas. Os limites de sua soberania se estendiam até onde
se encontravam pessoas de sua linhagem e que aderiam ao seu culto. Por sua vez,
estes mudavam de residência de acordo com as necessidades do pastoreio e
plantio. Assim, em vez de termos fronteiras fixas como nas definições
territoriais que conhecemos, temos “fronteiras sociais” que podiam mudar de ano
para ano em função das atividades econômicas[5].
O ayllu não tinha uma definição geográfica, pois as relações entre seus
componentes eram apenas de consangüinidade e rituais.
O
que se pode entender por ayllu no século XVI é um conjunto de pessoas,
que não necessariamente viviam concentradas em um lugar, mas que estavam
ligadas por laços de parentesco e de culto a um antepassado comum.
Esta
concepção fluída de ayllu mudou depois da chegada dos espanhóis. Por um
lado, o processo de evangelização, por outro, as doenças introduzidas pelos
europeus, que causaram uma baixa demográfica entre os nativos e, também, a necessidade
de facilitar a arrecadação de impostos e organizar a mão-de-obra. Esses foram
alguns dos fatores que em conjunto levaram à implantação da política das
reduções[6].
Estas começaram informalmente em 1540, por causa da mortalidade entre os
nativos. Os sobreviventes iam se aglomerando com outros grupos, quando suas
linhagens se extinguiam[7].
A partir da década de 1570, o vice-rei Francisco de Toledo implementa as
reduções com o objetivo de aumentar o poder colonial, concentrando integrantes
de vários ayllus que viviam dispersos, em novos assentamentos passíveis
de exploração por parte dos espanhóis. As reduções diminuíram o poder do curaca
e acabaram com o culto aos seus antepassados. A conversão ao catolicismo
significa o fim da identidade enquanto filhos comuns de um único ancestral. Ao
deixarem de identificar-se enquanto sujeitos a um curaca e filhos de
determinadas huacas, os povos andinos passaram a identificar-se com um lugar.
Esse lugar era a redução, que foi criada para facilitar o controle de um Estado
central europeu.
Ao
analisarmos as crônicas, percebemos esse processo, que começa com a
representação do ayllu como sendo um clã ou um povoado e depois durante
o período toledano, o que interessa são os assentamentos de acordo com o modelo
europeu. Por isso, ao lermos as crônicas, estamos enfatizando os discursos que,
convergentes ou divergentes ou simplesmente entrelaçados nas fronteiras
discursivas, vão construindo imagens do mundo andino, que podem por sua vez ser
explicadas historicamente. Essas imagens não são só fruto dos esforços feitos
por europeus, nativos e mestiços para representar esse mundo através dos
textos, são também expressões do pensamento que surge de uma nascente
modernidade ou de uma cultura e sociedade (a espanhola) que vive a transição do
mundo medieval para o moderno e tem por tarefa compreender a realidade
americana e construir uma ordem política e social nestas terras.
O
problema encontrado ao analisarmos as crônicas tardias é que nem sempre aparece
o termo ayllu e isso, talvez se deva ao desconhecimento do quechua por parte dos espanhóis ou ao
fato, de num primeiro momento, eles estarem mais interessados em registrar a
quantidade de povoados, curacas e
seus dependentes. No documento de 1540, sobre a visita à região de Cajamarca, o
encarregado da visita deve perguntar por parcialidades
e curacas[8],
o que nos leva a crer que o termo parcialidade foi inicialmente sinônimo de ayllu.
Em documentos da época, é usual referirem-se a provincias e repartimientos
e também pueblos com seus curacas, denotando-se uma preocupação
com o número de pessoas e de recursos disponíveis[9],
o que atenderia ao sistema de encomiendas
vigente nesse período.
Durante
a visita geral de Francisco de Toledo há uma preocupação em perguntar
especificamente pelos ayllus[10],
porém ainda não temos claro o momento em que essa categoria passa a ser
representada na documentação espanhola e sua coexistência ou diferenciação em
relação ao que era a parcialidade.
Na
serra norte, por sua vez, o termo ayllu não era utilizado pelas etnias
locais, e sim, o termo pachaca, o que
nos mostra que havia diferenças regionais.
O que pudemos perceber até o momento é que os cronistas tardios
referem-se a ayllu, parcialidad e pachaca como sendo sinônimos, mas no período toledano os termos parcialidad ou suyu são equivalentes às divisões sócio-políticas de vários ayllus agrupados em bandos. Os ayllus são representados como grupos
unidos por parentesco com origem comum e mítica. Esse vocábulo parece pertencer à
realidade das etnias que habitavam no vale de Cuzco e foram os espanhóis que o
propagaram, ora significando linhagem, ora povoado.
Em síntese, antes da chegada dos espanhóis, o ayllu tratava-se de um grupo ligado por laços de parentesco, além
de outras características já tratadas, que sob o domínio incaico foi
inserido num contexto maior, tendo por função atender ao sistema produtivo do
Estado inca. No período colonial, o ayllu
aparece nos relatos de cronistas não só como linhagem, mas também como povoado,
transformando assim sua antiga conotação. Depois das reduções toledanas também
muda a sua organização e o ayllu
passa a representar não só uma unidade de parentesco, mas também uma unidade
política territorial em que o objetivo foi proporcionar mão-de-obra disponível
para as tarefas coloniais.
Os cronistas espanhóis, ao tratarem o assunto, não estavam apenas
influenciados pela realidade colonial peruana, mas também por critérios
trazidos da Espanha, como a concepção que tinham de suas próprias comunidades
camponesas. Isso, ao nosso ver, deve ter sido determinante nas análises que
fizeram do ayllu. Através de uma
revisão crítica do que pensavam os cronistas desse período a respeito do ayllu, podemos confrontar
informações para perceber o que se confirma e o que se contradiz
nesses documentos. A partir daí, percebemos as representações
que levaram à identificação de ayllu
com comunidade e redução na passagem do período pré-hispânico para o colonial.
Verificamos também como o processo de 'aculturação' sofrida por cronistas indígenas influenciou em seus escritos. É importante frisar, que entendemos por processo de
‘aculturação’, um movimento de adaptações, assimilações, reelaborações e
inclusive recusas e ações contra-aculturativas. Em termos gerais se entende por
aculturação o conjunto de fenômenos que resultam do contato direto e contínuo
de grupos que participam de culturas diferentes[11].
Nathan Wachtel, grande estudioso da história do Peru, abordou em várias
obras o conceito de aculturação, deixando transparecer uma tendência a colocar
em oposição tradição e aculturação, o que leva a uma simplificação do processo
de absorção dos novos elementos culturais, considerados superficiais e
desestruturadores[12].
Já Steven Stern ao tratar as mudanças ocorridas com os índios que ficaram
frente aos ocidentais, prefere denominar esse processo de resistência
adaptativa, em que os índios procuraram as melhores condições de sobrevivência[13].
Para contrastar, temos ainda o posicionamento de Serge Gruzinski, que considera
as mudanças culturais propícias à reorganização e resistência indígena, pois a
colaboração e adaptação à nova realidade eram fundamentais como métodos de
sobrevivência cultural[14].
Entendemos então que as crônicas redigidas por indígenas, mesmo sendo fruto de
uma visão aculturada, não significa que representem o mundo andino de forma
distorcida ou preconceituosa, muito pelo contrário, algumas se constituíram em
verdadeiros discursos apologéticos e de resistência cultural.
Os incas estavam acostumados a produzir excedente econômico e a pagar
tributo e os espanhóis aproveitaram o sistema preexistente para controlar a
mão-de-obra. Para isso, contavam com a ajuda de chefes locais, que mantinham, como antes, a ligação entre senhores e súditos. Foi essa administração indireta
que favoreceu a manutenção das tradições indígenas, apesar da ação espanhola em
sentido contrário através da evangelização e das reduções[15].
As crônicas indígenas são o resultado dessa mescla, em que por um lado é
visível a influência dessa ‘aculturação’, pois os cronistas retratam sua
realidade com visão ocidentalizada, mas por outro fazem uma apologia ao mundo
andino.
As crônicas de maior interesse para essa pesquisa foram
produzidas desde 1532 até princípios do século XVII, por ser o período em que
os cronistas escreveram sobre o ayllu
pré-hispânico e colonial. Sendo que o período inicial de colonização é o de
maior interesse, pois é quando o ayllu
sofre uma transformação conceitual consolidada no período das reduções
toledanas, ou seja, de primordialmente baseado em sistema de parentesco, o ayllu passa a ter por base um espaço
territorial definido.
Nesse estudo mostramos que o ayllu pré-hispânico foi geralmente composto por uma família extensa detentora ou não de um território utilizado
comunitariamente para subsistência de seus integrantes e, que no período colonial, adquiriu um caráter
primordialmente territorial com a finalidade de armazenar mão-de-obra. Sendo a
concepção de comunidade uma organização medieval européia, esta se confunde com
as reduções do vice-rei Toledo, originando a ideia de ser o ayllu uma comunidade, o que antes das
reduções não existe. O ayllu é um grupo
ligado por sistema de parentesco que possui ou não um território e que mantém
relações de reciprocidade produtiva, enquanto a comunidade é uma organização
colonial eminentemente territorial que tem por objetivo armazenar mão-de-obra. A dimensão política incaica é
aproveitada no período colonial. Chefes locais, descontentes com o domínio inca,
servem aos espanhóis que mantêm a mesma divisão territorial e a mesma estrutura
hierárquica, conforme foi estabelecido pelo Inca. O intuito não é mais atender
aos sistemas de reciprocidade e redistribuição, e sim, organizar a mão-de-obra
disponível.
[1] ESPINOZA
SORIANO, Waldemar. El
Valle de Jayanca y el reino de los Mochica: Siglos XV-XVI. Buletín de l’Institut Français d’Etudes Andines. IV:3-4, 1975, pp.243-274.
[2] AGI,
Justicia 458, 1801v.
[3] RAMÍREZ, Susan E. The world upside down: cross-cultural
contact and conflict in sixteenth-century Peru . Stanford: Stanford University Press, 1996.
[4] ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO,
María. Patronyms with
the consonant F. In: The Guarangas of Cajamarca. MASUDA, Shozo et al (Eds). Andean Ecology and Civilization. Tokyo :
University of Tokyo Press , 1985, pp.401-421.
[5] RAMIREZ, Susan E. Social frontiers and the territorial base of curacazgos. In: MASUDA, Shozo et al. Idem,
1985, pp. 423-442.
[6] ESCOBEDO
MANSILLA, Ronald. Las comunidades indígenas y la economía
colonial peruana.
Bilbao: Servicio Editorial de la
Universidad del Pais Basco, 1997, pp. 50, 54-60.
[7] ORTIZ DE ZUÑIGA, Iñigo. La visita de la provincia de León de
Huanaco en 1562. Huanaco: Universidad Nacional Hermilio Valdizar, 1972. 2
vols.
[8] ESPINOZA
SORIANO, Waldemar. El
primer informe etnológico sobre Cajamarca, Año de 1540. Revista Peruana de Cultura, 11-12, Lima, 1967, pp. 23.
[9]
ORTIZ DE ZUÑIGA, Iñigo. Op cit.,
1972. 2 vols.
[10] TOLEDO, Francisco de. Libro
general de la visita del virrey don Francisco de Toledo. ROMERO, Carlos. Revista Historica. VII, Lima, 1924
[1570-75]
[11]
SILVA-SANTISTEBAN, Fernando. El
significado de la conquista y el proceso de aculturación hispano-andino. In:
SOLANO, Francisco et al. Proceso
historico al conquistador. Madrid: Alianza, 1988, pp.147-150.
[12] Ver
WACHTEL, Nathan. Los vencidos. Los indios del Perú frente a la
conquista española
(1530-1570). Madrid: Alianza, 1976; Idem. A aculturação. In: LE GOFF,
Jacques, NORA, Pierre. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1988; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios aldeados no Rio de Janeiro colonial – Novos súditos cristãos
do Império Português. Tese de Doutorado da Universidade Estadual de
Campinas. São Paulo, 2000, p.45.
[13] STERN, Steve. Resistance, rebellion and consciounes in the Andean Peasant Word, 18th
to 20th Centuries. Tha University of Wisconsin
Press, 1987.
[14] GRUZINSKI, Serge. La red
agujerada – identidades étnicas y occidentalizacion en el Mexico colonial
(siglos XVI-XIX). America Indigena,
Mexico, n.3, jul-set, Vol. XLVI.
[15]
WACHTEL, Nathan. 1976b, pp. 114-115.
Caso queira saber mais sobre o ayllu andino, consulte o livro:
PORTUGAL, Ana Raquel. O ayllu andino nas crônicas quinhentistas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.
OBS: Fotos de acervo próprio.
profesora la felicito es el mejor articulo que ha escrito de la historia peruana....le cuento que chinchilico pertenece a un ayllu es el ayllu de saramarca ahi tiene unas tierras que siembra papa y olluco, despues de cada cosecha tiene que dar ofrenda a la pachamama y los apus el siempre va en la epòca de mayo a junio dar su ofrenda
ResponderExcluirQue bueno...agradezco mucho...y ahora puedes leer las cosas en español...queda más fácil. Me gusta saber sobre esos costumbres...muy interesante. Cuando me for a Peru otra vez, voy pedir a chinchilico para llevarme a su ayllu...me gostaria mucho participar deso ritual de ofrendas a pachamama.
ResponderExcluir