A sociedade andina sempre foi analisada por historiadores, antropólogos,
etnólogos, arqueólogos e outros especialistas, com o intuito de perceber as
modificações ocorridas desde a época pré-incaica até os dias atuais. Muitos
lançaram mão das crônicas para obter dados etnográficos e poder entender o
passado desses povos à luz da história e da antropologia. Dessa maneira, surgiu
a etnohistória peruana enquanto disciplina que unia o estudo de grupos
indígenas organizados de acordo com modelos ocidentais via metodologia
antropológica e também histórica para entender as populações indígenas atuais
como fruto de um processo histórico que as levou a uma desestruturação
cultural.
Os primeiros estudos etnohistóricos sobre a região andina remontam ao
século XIX, em que alguns pesquisadores estrangeiros, como Heinrich Cunow,
formularam uma proposta a respeito da comunidade andina, relacionando-a com a comunidade de aldeia, acreditando
encontrar na marca germânica a explicação
para compreender o mundo andino descrito pelos cronistas. Porém, sua teoria se
fundamentou em fontes que representavam a estrutura mental do europeu do século
XVI. Sabemos, por exemplo, que o espanhol transformou o sistema político dual
dos incas em uma monarquia, no entanto, nada aparece nas crônicas sobre a
dualidade. O modo que temos para averiguar a existência desse sistema é a
explicação dada pelos cronistas para a derrocada do Império Inca, já que no
momento da conquista espanhola dois Incas disputavam o poder. Ao passarem pelo
filtro europeu, as informações a respeito do mundo andino foram transformadas
em categorias do século XVI, em que os espanhóis construíam um ideal imperial à
luz da história de Roma, visto que esse era o modo como explicavam a própria
sociedade. Um outro exemplo, é a definição da panaca[1]
cuzquenha encontrada nas crônicas, que nada mais é que o modelo do genos[2] grego.
Depois de Cunow, outros pesquisadores, como Paul Rivet (duas teorias:
imigração via ásia e polinésia tardia e o autoctonismo) e Alfred Métraux (camponeses
atuais são os detentores da sabedoria dos antigos hatun runas), utilizaram as
crônicas como fontes, porém cientes de que estas representavam um mundo pautado
em preconceitos europeus. A aproximação entre antropologia e história foi muito importante para os
avanços historiográficos peruanos, visto que o fato dos antropólogos terem
passado a valorizar os processos de mudança social e os historiadores os
comportamentos, crenças e cotidianos dos homens comuns proporcionou abordagens
teórico-metodológicas interdisciplinares que valorizam fontes variadas e
permitem reflexões sobre situações históricas e sistemas culturais de
diferentes épocas. A definição de etnohistória como reconstrução da história de um povo sem escrita
tem sido questionada, pois o intuito maior dessa disciplina é entender como os
povos compreendem sua própria história. Pesquisadores peruanos e estrangeiros
procuraram desvendar as especificidades das sociedades andinas partindo de
releituras das tradicionais fontes andinas e de crônicas. Destacam-se pelo
pioneirismo, Luis E.Valcárcel, John V. Murra, John H. Rowe, Tom Zuidema,
Franklin Pease, Waldemar Espinoza e Maria Rostworowski. Esses autores
influenciaram a atual historiografia peruana que está preocupada em analisar a
história dos povos indígenas partindo de sua lógica e categorias. Dessa forma,
é possível perceber os mecanismos de resistência do povo andino para poder
sobreviver diante das adversidades do período colonial e republicano.
Os estudos etnohistóricos sobre mitos e tradições orais também são
extremamente importantes, pois revelam a capacidade dos grupos indígenas para
mudanças e rearticulação de valores e tradições, o que conduz a novas
interpretações sobre seus comportamentos frente aos ocidentais. Um exemplo
disso foi a descoberta do mito de Inkarrí, que através do simbolismo da
ressurreição do corpo do Inca, representa a reconstrução da sociedade indígena.
Esse fato foi interpretado de diversas formas, como movimento messiânico, milenarista
ou até mesmo de repúdio ao sistema colonial.
Os pesquisadores que mais trabalharam o período colonial foram John H.
Rowe, Nathan Wachtel e Steve J. Stern. Rowe possui trabalhos em que utiliza a
arqueologia e a história da arte para suas análises; Wachtel trabalha
descrições etnográficas em conjunto com a história desses povos para perceber o
que se manteve desde o período colonial inicial até à época do vice-rei Toledo;
e Stern trabalhou a região de Huamanga priorizando as alianças entre espanhóis
e índios que visavam a construção de um sistema colonial vantajoso para ambas
as partes. Esses estudos ajudaram a entender que os grupos indígenas foram
conquistados, mas não subjugados, pois o processo de alteridade por eles vivido
expressava uma negociação contínua e que por vezes, tinha rupturas demonstradas
por movimentos de resistência nativa, como por exemplo, o Taqui Ongo ocorrido
entre 1560 e 1565. O “ethos” andino nunca deixou de existir e era revigorado
constantemente como um modo de sobrevivência, pois podia significar a solução
de problemas imediatos e também a possibilidade de construção do sentimento de
nação peruana.
As pesquisas etnohistóricas peruanas revelam os índios enquanto sujeitos
ativos no processo de colonização, buscando concretizar seus objetivos e
mostrando que eles encontraram modos de sobreviver e garantir melhores
condições de vida na nova situação em que se encontravam. Por isso, é tão
importante dar prosseguimento a esse tipo de estudo que estabelece uma
articulação entre os processos históricos e a organização cultural desses
povos, valorizando as fontes à luz da interdisciplinaridade que proporciona
conhecimento sobre as relações de contato e sobre as transformações dos grupos
étnicos na situação colonial.
[1] panaca - “miembros de la elite cusqueña” ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO, Maria. Historia del Tahuantinsuyu, Lima: IEP, 1988, p.201.
[2] “genos” . “Família extensa aristocrática
grega, cujos membros se julgavam descender de um antepassado comum, com
freqüência um semideus ou um herói mítico” CARDOSO, Ciro Flamarion S. A
cidade-Estado antiga, São Paulo: Ática, 1985, p.85.
OBS: Fotos de acervo próprio.
OBS: Fotos de acervo próprio.
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