Em 1615, Felipe Guaman Poma de Ayala terminou de escrever sua crônica
intitulada Nueva Corónica y buen gobierno
para o rei Felipe III da Espanha. Tratava-se de uma carta com 1.189 páginas
solicitando ajuda para acabar com os males da colonização, que foram observados
por ele ao longo de suas viagens pelo território andino. Visando facilitar a
comunicação com seu receptor europeu, Guaman Poma adicionou 398 desenhos a sua
carta, pois conforme Sabine Fritz, o diálogo no contexto da Conquista espanhola
implicou na necessidade de uma mediação não só entre diferentes idiomas, mas
também entre diferentes visões de mundo e distintas formas de codificação
cultural (2005: 74). Guaman Poma na sua obra transmitiu pesar diante de fatos
que não podiam mais ser modificados. Para tal, usou a expressão "mundo al revés" em todas as
passagens que mostravam seu repúdio pela desgraça ocorrida em sua época. Para
Roger Zapata, esse comportamento reflete o desencanto de Guaman Poma em relação
ao Outro representado pelo europeu, o que o levou a buscar a
solidariedade de seus irmãos de raça e a denunciar os maltratos recebidos das
mãos de espanhóis (1992: 205).
Guaman Poma era índio puro originário de Huamanga,
região hoje conhecida por Ayacucho e que fica na parte sul dos Andes peruanos.
Levou uma vida itinerante e, entre outras coisas, foi auxiliar do Visitador de
Idolatrias Cristóbal de Albornoz, com quem aprendeu os códigos culturais
europeus. Utilizou tais códigos para obter prestígio junto aos espanhóis e
poder pleitear seus direitos por ser descendente da nobreza Yarovilca, que
havia antecedido aos Incas e como filho e neto de homens que haviam servido em
importantes postos aos senhores Incas do Tahuantinsuyu
(ROLENA, 2001: 4).
Em sua crônica, Guaman Poma mencionou que o Tahuantinsuyu teria sido doado aos espanhóis, negando que os povos
andinos tivessem sido dominados em uma guerra justa, e sim, que teria havido a
busca do estabelecimento de relações de reciprocidade entre eles (PEASE, 1994:
317). Ele entendeu a dinâmica do mundo colonial através de estruturas mentais
indígenas, procurando transformar a sociedade em que vivia.
Por ser índio ladino, ou seja, índio alfabetizado e cristianizado
pelos espanhóis, nosso cronista expôs em sua carta muitas histórias bíblicas,
como por exemplo, a de Adão e Eva como sendo o casal original do mundo andino.
Nesse período, os homens teriam tido maior conhecimento do verdadeiro Deus e
com o passar do tempo teriam deixado essa crença, tornando-se idólatras. Mesmo
diante desse pensamento cristão, podemos afirmar que nosso autor não esqueceu
sua identidade andina, pois sua obra trata-se de um diálogo entre dois mundos,
em que essa história bíblica se confunde com a visão milenarista e cíclica do
tempo andino. Assim, ele acreditava que o mundo ocidental tinha quatro idades
antes de Cristo como no mundo andino antes dos Incas, ou seja, a primeira
idade, a de Adão e Eva; a segunda, a de Noé; a terceira, a de Abraão; e a quarta,
a de David; e Cristo simbolizaria a quinta idade, bem como, os Incas na
civilização andina (YARANGA VALDERRAMA, 1991: 70).
Na primeira parte de sua crônica, intitulada a Nueva Coronica,
Guaman Poma descreveu tais idades da criação dos índios; abordou a história dos
reis Incas, das coyas (rainhas), dos
comandantes; tratou dos meses do ano, dos ritos e cerimônias; dos enterros e
das acllas (“escolhidas” para servir aos templos); da justiça, das festas
e da organização do governo incaico; e por fim, escreveu sobre a conquista do Tahuantinsuyu por Pizarro e as guerras
civis. Na segunda parte, com o título de Buen Gobierno, tratou dos
governos dos nove primeiros vice-reis e dos grupos sociais que havia na época,
como por exemplo, os religiosos, os funcionários da Audiência, os corregidores,
os soldados, os encomendeiros, os curacas,
índios comuns e escravos negros. Traçou também considerações a respeito da
política colonial e propôs novas soluções.
Guaman Poma passou muitos anos escrevendo sobre seus antepassados baseado
na tradição oral, que recolheu durante suas viagens por todo o Tahuantinsuyu. Discorreu sobre as
primeiras gerações de índios, que segundo o cronista, eram seres que não sabiam
se vestir e viviam em
cavernas. Passado algum tempo, aprenderam a plantar e a
irrigar a terra. Trabalharam-na e construíram casas e fortalezas. Também
conheceram o ouro e a prata, que usavam para fazer enfeites. Depois de terem
domesticado alguns animais, passaram a criar llamas, alpacas e guanacos,
dos quais aproveitavam a lã para fazer roupa. A população multiplicou-se e
conquistou toda a região andina muito antes dos Incas, os últimos governantes
dessas terras antes da chegada dos espanhóis. Dedicaram-se a observar os astros
para controlarem os períodos de semeadura e colheita, já que eram povos
agrícolas. Segundo Guaman Poma, esses conhecimentos foram passados de geração a
geração. Por serem muito trabalhadores havia comida e gado em abundância.
O hatun runa ou homem comum, ao casar-se recebia um tupu
para o sustento de sua família. Maria Rostworowski num estudo sobre os sistemas
de medições no mundo andino concluiu que um tupu era o lote de terra suficiente para a subsistência de um
casal sem filhos (1993: 178). Guaman Poma coloca que quando nascia uma criança,
esta recebia um nome e era apresentada ao ayllu
(grupo ligado por laços de
parentesco), que se encarregava da sua alimentação e educação, pois
também tinha direito a um pedaço de terra.
Guaman Poma elogiou a administração incaica por partilhar terra entre toda
a população, não deixando que ninguém ficasse sem ter onde produzir. Conforme o
calendário incaico, no mês de julho, os funcionários do Inca visitavam todos os
ayllus para redistribuir a terra e
isso era amplamente festejado.
Naquele tempo, segundo Guaman Poma, não havia ladrões, mentira, inveja,
preguiça, nem dívidas, porque havia muita justiça. Na época dos Incas
cuidava-se dos pobres e fracos e não havia fome.
Guaman Poma descreveu todas as festas realizadas ao longo do ano, sendo
que a principal era o Inti Raymi, que
acontecia em dezembro.
Era a festa do deus Sol em que se faziam muitos sacrifícios,
inclusive humanos.
Este cronista relatou todas as instâncias da organização incaica, mas
usou categorias européias, tanto religiosas como administrativas. Por isso,
quando documentou a lista de funcionários do Inca, deu-lhes a denominação
espanhola e indígena, agindo como grande tradutor do mundo andino. Por exemplo,
alguns cargos como o de "Corrigidor.
Tocricoc; ou o (...) Administrador. Suyuyoc"(GUAMAN POMA,
1993: 262 e 265). Isso demonstra sua preocupação em promover o encontro das
duas culturas através do domínio do espanhol, do quechua, do aymara e outros
dialetos que utiliza ao longo de sua carta.
Guaman Poma demonstrou que o governo dos Incas funcionava, porque ninguém
podia ficar na ociosidade. Toda a população do Tahuantinsuyu tinha que trabalhar em suas comunidades e para o
Estado.
Ao longo de sua crônica, aproveitou para deflagrar severas críticas aos
espanhóis, expondo seu descontentamento em relação ao cotidiano colonial e
pedindo soluções a Felipe III. Guaman Poma representou seu mundo não só por
intermédio da escrita, mas também através dos desenhos oriundos da mescla de
traços culturais andinos a concepções mentais européias. O resultado desse encontro/desencontro
cultural está expresso nos desenhos que espelham os anseios de um povo em
defender-se das atrocidades praticadas por uma sociedade totalmente distinta da
sua. Desse modo, desenvolveu o que François Hartog chama de retórica da
alteridade, pois “se a narrativa se desenvolve entre um narrador e um
destinatário implicitamente presente no próprio texto, a questão é então
perceber como ela ‘traduz’ o outro e como faz com que o destinatário creia no
outro que ela constrói” (HARTOG, 1999: 228).
Os desenhos de Guaman Poma foram feitos com traço
firme e de grande expressão. Muitos consideram que seu estilo tinha influência
européia e no que se refere a seus desenhos em que aparecem santos ou
ilustrações cristãs, não há o que negar. Porém, há estudos que provam que seus
desenhos eram iguais aos produzidos por artesãos andinos nos keros (BALLESTEROS
GAIBROIS, 1978: 41). Significa que ele
utilizava um estilo próprio para tentar familiarizar-se com a cultura espanhola
e poder defender os índios do colonialismo e ajudar no resgate de sua
identidade e de um lugar dentro da nova sociedade colonial.
Analisando alguns de seus desenhos, como por
exemplo, o da portada de sua crônica, percebemos que ele distribuiu
hierarquicamente a figura do Papa, que fica no alto e à esquerda, a do rei, que
está ligeiramente mais abaixo e à direita e, por último, ele próprio de joelhos
em postura de respeito frente à autoridade religiosa e real. Dessa maneira, ele
demonstrou conhecer a distribuição de poder segundo as normas européias. No
centro, ele apresentou os símbolos das coroas de Castela e Aragão e do lado
esquerdo na parte inferior do desenho as suas iniciais em destaque.
Figura 1
El primer Nueva Corónica y Buen Gobierno compuesto por don Felipe
Guaman Poma de Ayala · Sacra Católica Real Magestad · Su Santidad · [Monograma F.G.P] · Ayala · principe · El reino de las Indias.
O episódio da conquista
espanhola em Cajamarca foi descrito e desenhado em detalhes por Guaman Poma. O encontro de Francisco Pizarro e Atahualpa ocorreu em
1532 e começou com uma tentativa de reciprocidade, prática amplamente conhecida
pelos Incas, mas terminou em
guerra. O motivo para o início da batalha sangrenta teria
sido o fato de Atahualpa ter jogado a bíblia sagrada ao chão. Ofendido, o Frei
Vicente Valverde, queixou-se a Pizarro, que imediatamente ordenou o ataque.
Atahualpa foi prontamente capturado e o alvoroço foi tremendo. Índios correram
para todos os lados, fugindo dos tiros de arcabuzes e das patas dos cavalos e
outros ficaram paralisados pelo terror. A grande maioria das pessoas que se
encontrava na praça de Cajamarca, pereceu aí mesmo (XEREZ, 1985: 112-113). Na segunda figura aqui analisada, o Inca aparece em
posição de destaque, pois até o momento anterior ao ataque espanhol ele ainda é
o senhor dessas terras. Com o uso do interprete começam as negociações entre os
grandes senhores.
Figura 2
Conquista ·
Atagualpa Ingá está em la cuidad de Cajamarca em su trono, Usno ·
Almagro ·
Felipe Indio, lengua · Fray Vicente [Valverde] · Usno, trono. Asiento del
Inga ·
se sienta Atagualpa Inga en su trono.
Em todo o processo de encontro/desencontro cultural sempre há o grupo
vencedor e o perdedor. Pizarro solicitou um resgate imensurável pela liberdade
de Atahualpa, mas resolveu condená-lo à morte, mesmo depois de ter recebido
todo o montante de ouro e prata que havia exigido. Atahualpa sabendo de sua
sentença rogou a Pizarro por sua vida. O pedido de Atahualpa não foi levado em
conta, pois Pizarro estava resolvido a solucionar todos os seus problemas,
pondo fim à vida do Inca. Atahualpa foi retirado da prisão e ao som de
trombetas levado para a praça, onde o amarraram a um pau. Enquanto isso, um
religioso ia consolando-o e predicando-lhe, por meio de um intérprete, os
ensinamentos da fé cristã. Estando ele condenado a morrer na fogueira, nos
últimos instantes pediu para ser batizado, a que foi prontamente atendido e por
isso, conseguiu morrer garroteado, livrando-se de ser queimado vivo. Mesmo
assim, depois de cumprida a sentença, ainda lhe atiraram fogo à roupa para que
se queimasse também parte da carne. Seu enterro foi assistido por Pizarro e
seus companheiros, com direito a cruz e demais aparatos religiosos cristãos,
sendo por fim enterrado numa Igreja, como verdadeiro espanhol (SANCHO DE HOZ, 1986: 68). O assassinato de
Atahualpa, representado na terceira imagem, significou a desestruturação do
mundo andino e a conquista espanhola demonstrou como a falta de conhecimento do
outro pode gerar um desencontro cultural de conseqüências desastrosas, algo
visível e terrível para Guaman Poma.
Figura 3
Conquista · córtanle la cabeza a Atagualpa Ingá, umanta
cuchun. Murió Atagualpa en la ciudad de Cajamarca.
Guaman Poma também expressou suas idéias em relação
aos religiosos, que na sua concepção podiam ser péssimos exemplos de
comportamento, como observamos na quarta figura. Mas, por outro lado, em se
tratando de jesuítas, podiam ser responsáveis por uma evangelização caridosa
como a que aparece na figura cinco. Nesse ponto, sua experiência enquanto ajudante
de padre jesuíta fez com que ele depreciasse o outro que pouco conhecia e
interpretasse sua conduta de acordo com os pressupostos dos religiosos da
Companhia de Jesus. Guaman Poma baseou-se nas histórias contadas pelos jesuítas
sobre o fracasso das primeiras tentativas de evangelização. É certo, que nos
primeiros tempos, os religiosos que chegaram à região andina se confundiram com
soldados, visto que, conforme Lockhart, estes estavam interessados em obter
ganhos econômicos e preferiam guerrear do que propagar a fé. Isso acontecia
porque os sacerdotes seculares tinham menos regalias que os regulares, ganhavam
pouco e acabavam por tornar-se ávidos por riquezas.
Já os frades que pertenciam a Ordens religiosas tinham o apoio de suas
Congregações e vinham com planos pré-estabelecidos para desenvolver as suas
missões. Algumas dessas ordens receberam encomiendas e ajuda do Estado,
o que facilitou o desenvolvimento de suas tarefas no Novo Mundo ( LOCKHART, 1968: 50-56). Apesar dos
confrontos entre o clero regular e o clero secular, a partir de 1610, a
Companhia de Jesus conseguiu empreender sua campanha de cristianização e nosso
cronista enalteceu o sucesso de tal ação catequética.
Figura 4
Padre · Muy bravo y colérico padre contra los
caciques principales y contra sus indios, porque le defienden a las solteras y
doncellas le mata de palos a los indios · doctrina.
Figura 5
Padre · los padres de la Compañia de Jesús, santos
hombres en todo el mundo, que aman y hacen caridad, y dan lo que tienen a los
pobres, más en este reino · confiésame padre de todos mis
pecados, no me preguntes de las guacas, idolos y por amor de Jesucristo y de su
madre Santa Maria, absólveme y no me eches por la puerta, ten misericordia de
mi ánima · si los dichos Reverendos Padres
fuesen doctrinando evangelios, y predicasen pasiones de Jesucristo, y de la Virgen María, y de
todos los santos, y día del juicio, y de la sagrada escritura, no se huirían
los indios, pero tratan de si acas(...) [texto incompleto].
Os problemas vividos pelos grupos indígenas durante
a colonização espanhola estavam ligados às ações abusivas de padres e
funcionários da coroa, o que nosso cronista demonstrou ao longo de grande parte
de sua obra. Ele equiparou os funcionários espanhóis a animais que apenas queriam
devorar os pobres índios, pois por serem soberbos e não temerem a Deus eles
achavam que podiam explorar e humilhar essa pobre gente.
Figura 6
Pobre de los índios, de seis animales que
comen, que temen los pobres de los índios em este reino: corregidor, sierpe;
amallapallay que llatana uaycho por amor de Dios rayco [no me hagas, que tengo
que dar cosas tan grandes por amor de la causa de Dios]; tigre, españoles del
tambo; león, encomendero; zorra, padre de la doctrina; gato, escribano; ratón,
cacique principal; estos dichos animales que no temen a Dios desuellan a los
pobres indios en este reino, y no hay
remedio · pobre de Jesucristo.
Os padres não respeitavam nem as mulheres nativas e
por isso, nosso autor os denominou seres desprezíveis que não merecem ser
respeitados. Junto com os demais funcionários espanhóis eles converteram a vida
dos povos andinos em um verdadeiro suplício.
Figura 7
Consideración · como el mal tratamiento de los corregidores
y padres los índios e índias pobres están
en su tierra sin consideración de ello, y no temen a Dios, ni a la
justicia de Su Majestad · soberbia.
Guaman Poma não conseguiu entender mais o seu
próprio mundo, pois tudo aquilo que ele tinha como certo se inverteu com a
chegada dos espanhóis. O seu olhar sobre o outro se estendeu aos demais grupos
indígenas e Guaman Poma demonstrou isso através do conhecimento de diversos
dialetos, bem como, dos costumes culturais desses povos, pois com tanta mudança
era necessário tentar redescobrir o próprio ser andino. Sua obra mostra uma
progressiva tomada de consciência da realidade indígena e, segundo Roger
Zapata, aparece como um testemunho da inconformidade com o regime colonial
(1992: 210).
Guaman Poma utilizou então a linguagem escrita e
visual para expor seu descontentamento diante de um mundo que mal reconhecia
como seu. A alteridade aparece na relação dele com espanhóis e também com os
grupos andinos, pois esses dois mundos se apresentaram como fonte de
descobertas e estranhamentos, visto que muita coisa havia mudado durante o
período colonial e por isso, ele sempre expressava que seu mundo estava “al
revés”, ou seja, virado ao contrário. Aqueles que outrora tinham sido senhores,
hoje se submetiam aos agravos de “encomenderos” e de homens comuns de
suas próprias comunidades ávidos por ganhos. O cronista procurou através de sua
obra solicitar o auxílio do rei para acabar com esse processo de
desestruturação cultural e, de certo modo, sua mensagem refletia uma
necessidade de resistir e ao mesmo tempo adaptar-se ao novo para não sucumbir.
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