No início do século XIX,
chegou ao Rio de Janeiro a família real portuguesa e foram abertos os portos
brasileiros. Isso fez com que vários estrangeiros chegassem a essas terras,
curiosos e ansiosos por descobrir esse mundo “exótico” e cheio de diferenças.
Entre eles, diversos artistas que se dedicaram a representar a natureza
brasileira, o cotidiano e os grupos étnicos. Destacaram-se os pintores
franceses Jean Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, que chegaram com a
Missão Artística Francesa de 1816, Thomas Ender, um pintor austríaco que chegou
ao Brasil em 1817 e Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que veio em 1821.
Jean Baptiste Debret. Largo do Paço no
Rio, 1839.
Jean Baptiste Debret. Palácio Quinta da
Boa Vista, 1816.
Segundo Jean Baptiste
Debret, a cidade do Rio de Janeiro teve seus edifícios públicos melhorados
devido à presença da Corte[1], mas Thomas Ender achou-a
de arquitetura rude, embora tivesse alguns belos conjuntos e fosse muito
pitoresca. Para ele, as ruas eram apertadas, mal calçadas e sua iluminação era
feita à base de azeite de baleia. A população bastante ruidosa, alegre, de
todos os matizes, enchia as ruas de cores, cores estas, que estavam não só na
pele, mas nas vestes, nas casas, no céu, nas matas, na terra e tudo cintilando
à luz forte do sol dos trópicos[2].
Thomas
Ender. Panorama da cidade do Rio de Janeiro,
vista do terraço do Morro da Conceição, 1817.
Esse lado bonito da cidade
contrastava com a imundície das ruas e a pobreza do povo. John Mawe chamou a
atenção sobre a insalubridade da atmosfera, que favorecia as epidemias. O fato
de haver grande importação de escravos africanos, segundo ele, que eram
transportados em péssimas condições, fazia com que já desembarcassem enfermos,
contribuindo para a disseminação de doenças[3].
Mesmo assim, o Rio de
Janeiro atraía os viajantes estrangeiros que ficavam inebriados logo que
chegavam à entrada da Baía de Guanabara, local onde costumavam parar antes de
aportar para poderem vislumbrar a paisagem carioca com grandes montanhas
entrecortadas por belas enseadas. Prova disso, é a carta escrita por Charles
Darwin a sua irmã Caroline, em que descreveu a magnífica vista que pode
contemplar de seu navio quando chegava à cidade do Rio de Janeiro em 1832[4].
Nicolas Antoine Taunay. Entrada da baía
e da cidade do Rio a partir do terraço do convento de Santo Antônio em 1816,
1816.
O porto do Rio de Janeiro
era considerado o mais bem localizado do mundo para o comércio geral realizado
com a Europa, América, África, Índias Orientais e os Mares do Sul, e conforme
palavras de John Mawe parece ter sido criado pela natureza para constituir o
elo de união entre o comércio dessas grandes regiões do globo[5].
Depois do porto, o local
mais notável e freqüentado do Rio de Janeiro era sem dúvida a famosa Rua
Direita, hoje chamada Primeiro de Março. Era bela e comprida e pelo seu
movimento percebia-se o quanto era importante o comércio nessa cidade. O
historiador Afonso Taunay refere-se a ela como a viela onde os transeuntes
apinhavam-se apesar do forte calor do meio-dia, que nem por isso atrapalhava o
movimento comercial[6].
No Rio de 1843, havia apenas
um lugar de recreio, o Passeio Público, parque assaz bonito, com certos ares de
jardim botânico. Taunay conta-nos ainda sobre a realidade do Hospital dos
Lázaros em São Cristóvão e dos dois hospícios localizados na Praia Vermelha. O
primeiro era limpo e encerrava sessenta doentes, dos quais metade eram
mulheres. Já os hospícios estavam super lotados e tinham capacidade para apenas
80 pacientes cada um deles. Taunay achou curioso que a maioria desses alienados
fossem negros[7].
Por precaução contra os
crimes, o Rio de Janeiro era bem iluminado até distâncias consideráveis nos
arrabaldes. Depois das nove horas da noite a nenhum negro se permitia circular
pelas ruas sem permissão escrita por seu respectivo senhor. Quando algum era
encontrado sem o tal papel, a polícia o encarcerava logo, raspava-lhe a cabeça
a navalha e mantinha-o preso até que o proprietário viesse retirá-lo da prisão
mediante o pagamento de cinco mil réis de multa. O homicídio e a impunidade
freqüente do crime eram velhos flagelos brasileiros, causando aos europeus
péssima impressão[8].
A chegada de muitos
estrangeiros ao Rio fez com que crescesse o número de mendigos nas ruas e
alguns recém-chegados tinham que se resignar aos mais sórdidos empregos. Só
aqueles que vinham a chamado do governo brasileiro tinham direito a lotes,
víveres e alguns recursos para começarem vida nova, e por isso, era
absolutamente desaconselhável emigrar sem trazer algum dinheiro[9].
Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do
Rio de Janeiro, 1835.
Os estrangeiros que chegaram
no século XIX eram em sua maioria cientistas e artistas, por isso, davam grande
importância à educação e ao cuidado estético. Debret é o primeiro a perceber
que as mulheres cariocas apenas aprendiam os afazeres domésticos e as artes
manuais. Recitavam as preces de cor e calculavam de memória, pois não sabiam
escrever nem fazer as operações. Foi só a partir de 1820 que a educação começou
a tomar verdadeiro impulso e os meios de ensino multiplicaram-se de tal maneira
que de ano para ano algumas mulheres puderam manter correspondência em várias
línguas e apreciar a leitura como na Europa[10].
Esteticamente, os cariocas
deixavam a desejar, conforme as palavras de Taunay, que nos conta que esses
homens e mulheres deixavam crescer imensos cabelos negros e infelizmente, no
caso das mulheres, estas os traziam trançados e levantados, configurando
desgraçados penteados, que lhes iam mal à delicadeza do rosto[11].
Os viajantes que eram
médicos também deviam ficar bastante indignados com algumas práticas de
barbeiros cariocas, que eram homens de sete instrumentos, na verdadeira acepção
da palavra, porque além da tesoura e da navalha, manejavam instrumentos próprios
da odontologia e da rústica medicina. Com seus grossos boticões arrancavam
dentes a frio, num tempo em que a anestesia longe estava de ser utilizada e
substituíam os poucos médicos existentes na arte de sangrar os doentes e
aplicar-lhes sanguessugas, expostas nas próprias barbearias em redomas de
vidro, vivas e famintas[12].
Momentos lúdicos, como uma
ida ao Teatro, também podiam transparecer a falta de higiene que grassava
naqueles tempos e que espantava nossos viajantes cientistas. Nos intervalos da
peça, as pessoas comiam peixe frito sentindo bem vivo o cheiro dos “tigres”
jogados ao mar à noite pelos escravos, pois bem longe estava ainda o tempo dos
esgotos[13].
O Rio de Janeiro aos olhos
dos viajantes estrangeiros era uma cidade cheia de contradições, bonita por
natureza, mas fonte inesgotável de análises críticas. Esses homens imbuídos de
seus próprios referenciais culturais, por vezes, demonstraram grande
preconceito contra negros e mulatos e grande admiração pelas belezas naturais
dessa cidade. Não podemos esquecer que seus relatos enfáticos correspondiam à
retórica própria da literatura de viagem da época, em que o objetivo era
alcançar sucesso no mercado editorial europeu. Não por isso, tais relatos se
tornam menos importantes para conhecermos um pouco mais sobre o cotidiano da
cidade do Rio de Janeiro oitocentista, pois a estranheza que tais viajantes
vivenciaram os fez mais atentos a detalhes que passavam despercebidos à
população local, tornando esse tipo de fonte valiosa para os estudos sobre o
cotidiano carioca.
FONTES,
BIBLIOGRAFIA E ACERVOS ICONOGRÁFICOS
Acervo do Instituto Cultural Itaú (http://www.itaucultural.org.br)
Acervo Brasiliana USP (http://www.brasiliana.usp.br)
BURKHARDT, Frederick
H., SMITH, Sydney (Orgs). The
Correspondence of Charles Darwin. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1940.
FERREZ, Gilberto. O
velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas Ender. São Paulo:
Edições Melhoramentos, s.d..
GERSON, Brasil. História
das ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Souza, 1954.
MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil
principalmente aos distritos de Ouro e do Diamante. Rio de Janeiro. Zélio
Valverde, 1944.
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. São
Paulo: Círculo do Livro, s.d. [1835].
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Rio de Janeiro de antanho: impressões de viajantes estrangeiros.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
[1] DEBRET, 1940, p.10.
[2] ENDER in FERREZ, s.d.,p.9.
[3] MAWE, 1944, p.106.
[4] Carta de 1832. In: BURKHARDT,
SMITH, 1985, p.219.
[5] MAWE, Op. Cit., 1944, p.107.
[6]
TAUNAY, 1942, pp.32 e 266.
[7]
Idem, pp.228 e 238.
[8]
Ibidem, p.356 e 380.
[9]
Ibidem, p.381.
[10] DEBRET, Op. Cit., 1940, p.17.
[11] TAUNAY, Op. Cit., 1942, p.89.
[12]
GERSON, 1954, p.47.
[13]
Idem, p.27.
OBS: Artigo originalmente publicado em:
PORTUGAL, Ana Raquel . O RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA. Revista Historik, V.3, n.7, 2013, pp.1-6.
http://www.revistahistorik.com/descargas/O_Rio_de_Janeiro_oitocentista.pdf
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