segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA


No início do século XIX, chegou ao Rio de Janeiro a família real portuguesa e foram abertos os portos brasileiros. Isso fez com que vários estrangeiros chegassem a essas terras, curiosos e ansiosos por descobrir esse mundo “exótico” e cheio de diferenças. Entre eles, diversos artistas que se dedicaram a representar a natureza brasileira, o cotidiano e os grupos étnicos. Destacaram-se os pintores franceses Jean Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, que chegaram com a Missão Artística Francesa de 1816, Thomas Ender, um pintor austríaco que chegou ao Brasil em 1817 e Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que veio em 1821.


Jean Baptiste Debret. Largo do Paço no Rio, 1839.


Jean Baptiste Debret. Palácio Quinta da Boa Vista, 1816.


Segundo Jean Baptiste Debret, a cidade do Rio de Janeiro teve seus edifícios públicos melhorados devido à presença da Corte[1], mas Thomas Ender achou-a de arquitetura rude, embora tivesse alguns belos conjuntos e fosse muito pitoresca. Para ele, as ruas eram apertadas, mal calçadas e sua iluminação era feita à base de azeite de baleia. A população bastante ruidosa, alegre, de todos os matizes, enchia as ruas de cores, cores estas, que estavam não só na pele, mas nas vestes, nas casas, no céu, nas matas, na terra e tudo cintilando à luz forte do sol dos trópicos[2]. 


Thomas Ender. Panorama da cidade do Rio de Janeiro, vista do terraço do Morro da Conceição, 1817.

Esse lado bonito da cidade contrastava com a imundície das ruas e a pobreza do povo. John Mawe chamou a atenção sobre a insalubridade da atmosfera, que favorecia as epidemias. O fato de haver grande importação de escravos africanos, segundo ele, que eram transportados em péssimas condições, fazia com que já desembarcassem enfermos, contribuindo para a disseminação de doenças[3].
Mesmo assim, o Rio de Janeiro atraía os viajantes estrangeiros que ficavam inebriados logo que chegavam à entrada da Baía de Guanabara, local onde costumavam parar antes de aportar para poderem vislumbrar a paisagem carioca com grandes montanhas entrecortadas por belas enseadas. Prova disso, é a carta escrita por Charles Darwin a sua irmã Caroline, em que descreveu a magnífica vista que pode contemplar de seu navio quando chegava à cidade do Rio de Janeiro em 1832[4].


Nicolas Antoine Taunay. Entrada da baía e da cidade do Rio a partir do terraço do convento de Santo Antônio em 1816, 1816.

O porto do Rio de Janeiro era considerado o mais bem localizado do mundo para o comércio geral realizado com a Europa, América, África, Índias Orientais e os Mares do Sul, e conforme palavras de John Mawe parece ter sido criado pela natureza para constituir o elo de união entre o comércio dessas grandes regiões do globo[5].
Depois do porto, o local mais notável e freqüentado do Rio de Janeiro era sem dúvida a famosa Rua Direita, hoje chamada Primeiro de Março. Era bela e comprida e pelo seu movimento percebia-se o quanto era importante o comércio nessa cidade. O historiador Afonso Taunay refere-se a ela como a viela onde os transeuntes apinhavam-se apesar do forte calor do meio-dia, que nem por isso atrapalhava o movimento comercial[6].
No Rio de 1843, havia apenas um lugar de recreio, o Passeio Público, parque assaz bonito, com certos ares de jardim botânico. Taunay conta-nos ainda sobre a realidade do Hospital dos Lázaros em São Cristóvão e dos dois hospícios localizados na Praia Vermelha. O primeiro era limpo e encerrava sessenta doentes, dos quais metade eram mulheres. Já os hospícios estavam super lotados e tinham capacidade para apenas 80 pacientes cada um deles. Taunay achou curioso que a maioria desses alienados fossem negros[7].
Por precaução contra os crimes, o Rio de Janeiro era bem iluminado até distâncias consideráveis nos arrabaldes. Depois das nove horas da noite a nenhum negro se permitia circular pelas ruas sem permissão escrita por seu respectivo senhor. Quando algum era encontrado sem o tal papel, a polícia o encarcerava logo, raspava-lhe a cabeça a navalha e mantinha-o preso até que o proprietário viesse retirá-lo da prisão mediante o pagamento de cinco mil réis de multa. O homicídio e a impunidade freqüente do crime eram velhos flagelos brasileiros, causando aos europeus péssima impressão[8].
A chegada de muitos estrangeiros ao Rio fez com que crescesse o número de mendigos nas ruas e alguns recém-chegados tinham que se resignar aos mais sórdidos empregos. Só aqueles que vinham a chamado do governo brasileiro tinham direito a lotes, víveres e alguns recursos para começarem vida nova, e por isso, era absolutamente desaconselhável emigrar sem trazer algum dinheiro[9].


Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do Rio de Janeiro, 1835.

Os estrangeiros que chegaram no século XIX eram em sua maioria cientistas e artistas, por isso, davam grande importância à educação e ao cuidado estético. Debret é o primeiro a perceber que as mulheres cariocas apenas aprendiam os afazeres domésticos e as artes manuais. Recitavam as preces de cor e calculavam de memória, pois não sabiam escrever nem fazer as operações. Foi só a partir de 1820 que a educação começou a tomar verdadeiro impulso e os meios de ensino multiplicaram-se de tal maneira que de ano para ano algumas mulheres puderam manter correspondência em várias línguas e apreciar a leitura como na Europa[10].
Esteticamente, os cariocas deixavam a desejar, conforme as palavras de Taunay, que nos conta que esses homens e mulheres deixavam crescer imensos cabelos negros e infelizmente, no caso das mulheres, estas os traziam trançados e levantados, configurando desgraçados penteados, que lhes iam mal à delicadeza do rosto[11].
Os viajantes que eram médicos também deviam ficar bastante indignados com algumas práticas de barbeiros cariocas, que eram homens de sete instrumentos, na verdadeira acepção da palavra, porque além da tesoura e da navalha, manejavam instrumentos próprios da odontologia e da rústica medicina. Com seus grossos boticões arrancavam dentes a frio, num tempo em que a anestesia longe estava de ser utilizada e substituíam os poucos médicos existentes na arte de sangrar os doentes e aplicar-lhes sanguessugas, expostas nas próprias barbearias em redomas de vidro, vivas e famintas[12].
Momentos lúdicos, como uma ida ao Teatro, também podiam transparecer a falta de higiene que grassava naqueles tempos e que espantava nossos viajantes cientistas. Nos intervalos da peça, as pessoas comiam peixe frito sentindo bem vivo o cheiro dos “tigres” jogados ao mar à noite pelos escravos, pois bem longe estava ainda o tempo dos esgotos[13].
O Rio de Janeiro aos olhos dos viajantes estrangeiros era uma cidade cheia de contradições, bonita por natureza, mas fonte inesgotável de análises críticas. Esses homens imbuídos de seus próprios referenciais culturais, por vezes, demonstraram grande preconceito contra negros e mulatos e grande admiração pelas belezas naturais dessa cidade. Não podemos esquecer que seus relatos enfáticos correspondiam à retórica própria da literatura de viagem da época, em que o objetivo era alcançar sucesso no mercado editorial europeu. Não por isso, tais relatos se tornam menos importantes para conhecermos um pouco mais sobre o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro oitocentista, pois a estranheza que tais viajantes vivenciaram os fez mais atentos a detalhes que passavam despercebidos à população local, tornando esse tipo de fonte valiosa para os estudos sobre o cotidiano carioca.


FONTES, BIBLIOGRAFIA E ACERVOS ICONOGRÁFICOS

Acervo do Instituto Cultural Itaú (http://www.itaucultural.org.br)
Acervo Brasiliana USP (http://www.brasiliana.usp.br)
BURKHARDT, Frederick H., SMITH, Sydney (Orgs). The Correspondence of Charles Darwin. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1940.
FERREZ, Gilberto. O velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas Ender. São Paulo: Edições Melhoramentos, s.d..
GERSON, Brasil. História das ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Souza, 1954.
MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil principalmente aos distritos de Ouro e do Diamante. Rio de Janeiro. Zélio Valverde, 1944.
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. [1835].
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Rio de Janeiro de antanho: impressões de viajantes estrangeiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.




[1] DEBRET, 1940, p.10.
[2] ENDER in FERREZ, s.d.,p.9.
[3] MAWE, 1944, p.106.
[4] Carta de 1832. In: BURKHARDT, SMITH, 1985, p.219.
[5] MAWE, Op. Cit., 1944, p.107.
[6] TAUNAY, 1942, pp.32 e 266.
[7] Idem, pp.228 e 238.
[8] Ibidem, p.356 e 380.
[9] Ibidem, p.381.
[10] DEBRET, Op. Cit., 1940, p.17.
[11] TAUNAY, Op. Cit., 1942, p.89.
[12] GERSON, 1954, p.47.
[13] Idem, p.27.


OBS: Artigo originalmente publicado em:

PORTUGAL, Ana Raquel . O RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA. Revista Historik, V.3, n.7, 2013, pp.1-6.
http://www.revistahistorik.com/descargas/O_Rio_de_Janeiro_oitocentista.pdf


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