sábado, 14 de janeiro de 2012

ENFOQUE CRÍTICO DA ARQUEOLOGIA


Serra do Cipó - MG - Brasil

Apresentar um esboço crítico da arqueologia[1] pede antes de tudo um entendimento do significado de tal vocábulo. Essa palavra de origem grega refere-se ao conhecimento dos princípios ou relato das coisas antigas e é utilizada para designar uma ciência em construção que estuda sistemas sociais, sua estrutura, o funcionamento e transformações com o correr do tempo, a partir da porção da totalidade material socialmente apropriada, como artefatos, biofatos e ecofatos[2].
Nas últimas décadas, ocorreram grandes mudanças em que se assistiu a um período de questionamento global dos fundamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos da historiografia e da arqueologia, disciplina que passaremos a analisar.

Algumas interpretações na arqueologia

Bruce G. Trigger escreveu uma das melhores obras sobre a história da arqueologia até os nossos dias, mostrando como foram ocorrendo as mudanças metodológicas na interpretação arqueológica, usando para tanto, exemplos e nomes dos principais pesquisadores seguidores das várias correntes teóricas utilizadas pela arqueologia[3].
A literatura arqueológica, segundo Colin Renfrew e Paul Bahn, é composta por diversas discussões entre os seguidores da linha positivista, marxista, estruturalista e outras[4].
No início do século XX, os arqueólogos usavam uma linha teórica positivista tradicional, que prevaleceu por muitas décadas. A preocupação da época era mostrar pontos de origem por um processo de “difusão cultural”, assim como ter um “horizonte cronológico” e uma série de definições de estilos de cerâmica no espaço e tempo[5].
Por volta da década de 30, Gordon Childe iniciou a crítica a essa arqueologia tradicional, usando para isso, uma análise marxista, que só passou a ser examinada por volta de 1960 e 1970. Para ele, a arqueologia trata-se de uma forma de história e não uma simples disciplina auxiliar. Os dados arqueológicos são documentos históricos por direito próprio e não meras abonações de textos escritos e são constituídos por todas as alterações no mundo material resultantes da ação humana, ou melhor, são os restos materiais da conduta humana. O seu conjunto constitui os chamados testemunhos arqueológicos. Estes apresentam particularidades e limitações cujas conseqüências se revelam no contraste bem visível entre a história arqueológica e a outra forma usual de história, baseada em documentos escritos[6].
Na década de 50, aparecem as grandes descobertas e as cidades perdidas e os arqueólogos tinham que ser mais aventureiros, do que bons acadêmicos. Mas, é também nesse período que surge a escavação estratigráfica, que implica que os estratos do sítio sejam retirados, segundo sua colocação e configuração original, no sentido inverso ao que foram depositados[7]. Assim, ocorre a destruição dos monumentos arqueológicos em nome da estratigrafia.
Entre os anos 50 e 60 houve a reconstrução arbitrária de uma série de monumentos, em nome da conservação e restauração. Porém, é na década de 60 que aparece a New Archaeology[8], que é uma linha teórica que se desenvolveu na América e que segundo Luis Lumbreras, trata-se de uma corrente que surgiu como resultado da obsoleta arqueologia positivista, visto que esta se colocou à margem do desenvolvimento técnico da ciência. O empirismo arqueológico, por um lado, e o subjetivismo das generalizações obrigaram os arqueólogos a estabelecer a necessidade de uma formulação metodológica de base indutivo-dedutiva[9].
Essa nova corrente apresenta uma série de falhas, pois como coloca Ian Hodder, a New Archaeology se esqueceu do indivíduo, considerando-o alheio à teoria social. As vasilhas individuais se estudavam como meros reflexos passivos do sistema sócio-cultural. Estudava-se cada vasilha, cada artefato para ver seu funcionamento em relação ao sistema como um todo[10].
Apesar desta corrente teórica ter a intenção de romper com a interpretação positivista tradicional na arqueologia, ela não o conseguiu, porque segundo Funari, esta corrente apresentava e formulava princípios relativos a processos culturais, visando a compreensão do comportamento humano em geral e acabou se tornando uma proposta antropológica que se opunha à mera tentativa de reconstrução histórica[11].
Dessa forma, a New Archaeology foi criticada e chamada de funcionalista[12] e também de ecologista[13] e em 1970 aparece como reação a arqueologia estruturalista, que proporciona um método e uma teoria para a análise do significado da cultura material.
Dentro desse processo histórico de desenvolvimento da arqueologia aparecem uma série de novos métodos para interpretar os objetos de estudo na área arqueológica como, por exemplo, baseados na corrente marxista. Para Ian Hodder, na arqueologia marxista são as condições materiais ou as contradições estruturais que determinam o indivíduo e as ideologias dominantes as que o mitificam[14].
Luis Lumbreras, defensor da arqueologia como ciência social, assim como o foi Gordon Childe, se apoia no marxismo, porém com uma abordagem estruturalista, pois para ele a arqueologia se preocupa em estudar sistematicamente as sociedades cujos restos materiais nos permitem reconstruir determinados aspectos de sua vida[15].
Atualmente a arqueologia não trata somente de assinalar e dispor de uma posição teórica, mas sim de conseguir seus referentes ontológicos e epistemológicos de maneira explícita no processo de investigação científica. É importante perceber as mudanças ocorridas desde o início do século até aos nossos dias e principalmente, entender a importância do desmantelamento da arqueologia tradicional, frente às novas teorias existentes.

San Pedro do Atacama - Chile


Considerações finais

Neste breve histórico sobre as mudanças ocorridas nas análises arqueológicas podemos destacar três linhas teóricas de grande importância: a positivista tradicional, a neopositivista, conhecida por New Archaeology e a arqueologia como ciência social.
A corrente positivista tradicional, própria do final da década de 50, tinha no objeto seu tema de estudo. Dessa forma, os arqueólogos desse período efetuavam classificações de cerâmica, podendo ser, por vezes, confundidos com historiadores da arte.
O neopositivismo constituiu uma escola que se autodenominou New Archaeology e desde a década de 60 tem grande importância nos círculos acadêmicos norte-americanos.
A New Archaeology tem seu aparato conceitual baseado na categoria “cultura”, elaborada pelos antropólogos ou etnólogos, como noção central e totalizadora da atividade social. Sendo a “cultura” o objeto de estudo e assumindo que era constituída pelo conjunto de pautas possibilitadoras da atividade dos indivíduos  na vida social, o estudo da cultura consistia  na busca de tais pautas e a determinação da rede causal de sua configuração.
A arqueologia como ciência social, que tem suas premissas no marxismo, passou da pesquisa dos objetos ao estudo das pessoas. O questionamento de uma ontologia idealista, que submete a realidade a uma categoria totalizadora como o conceito cultura, implicava a necessidade de desenvolver uma coerente inserção de uma ontologia materialista no aparato conceitual da arqueologia. A arqueologia como ciência social responde às incógnitas postuladas pelos arqueólogos, visto que o objetivo da interpretação arqueológica é entender quem fez o objeto, porquê e para quê, ou seja, buscar compreender o sujeito em seu meio social, baseando-se nos restos materiais.
Os arqueólogos estavam incapacitados de se aproximarem de maneira crítica a qualquer proposta explicativa da História, da Antropologia ou da Sociologia. Porém, a influência de Gordon Childe, que se baseava no marxismo para dar um tratamento contrário frente às seqüências de artefatos dos arqueólogos tradicionais, os fez tentar romper com o empirismo e assumir o compromisso com a ciência, buscando a explicação sistemática dos fenômenos sociais no campo da dialética materialista.

Vestígios Wari - Ayacucho - Peru


Bibliografia

CHILDE, V. Gordon. Introdução à arqueologia. 2.ed. Lisboa: Europa-América, 1977.
DICIONÁRIO de Ciências Sociais. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987.
FRÉDÉRIC, Louis. Manual prático de arqueologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1980.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988.
HODDER, Ian. Interpretación en arqueología; corrientes actuales. Barcelona: Editorial Crítica, 1988.
LUMBRERAS, Luis G. La arqueologia como ciencia social. Lima: Peisa, 1981.
RENFREW, Colin, BAHN, Paul. Archaeology; theories, methods and practice. New York: Thames and Hudson, 1991.
SCHNAPP, Alain. A arqueologia. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. História: novas abordagens. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. New York: Cambridge University Press, 1989.




[1] “Etimologicamente, é a ciência da antiguidade (archaios: antigo, logos: ciência), no sentido em que o entendiam os historiadores gregos e Josefo nas suas Antiguidades Judaicas”. Frédéric, Louis. Manual prático de arqueologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1980, p.19.
[2] Funari, Pedro P. A. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988, p.78.
[3] Trigger, Bruce G. A history of archaeological thought. New York: Cambridge University Press, 1989.
[4] Renfrew, Colin, Bahn, Paul. Archaeology: theories, methods and practice. New York: Thames and Hudson, 1991, p. 405.
[5] Idem, 1991, p.407.
[6] Childe, v. Gordon. Introdução à arqueologia. 2.ed. Lisboa: Europa-América, 1977, p.9.
[7] Funari, op. cit., 1988, p.80.
[8]  “Ela procura desmontar os paralogismos dos procedimentos tradicionais, procura tornar explícito o que estava implícito” Schnapp, Alain. A arqueologia. In: Le Goff, Jacques, Nora, Pierre. História: novas abordagens. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.16.
[9] Lumbreras, Luis G. La arqueologia como ciencia social. Lima: Peisa, 1981, p.7.
[10] Hodder, Ian. Interpretación en arqueología; corrientes actuales. Barcelona: Editorial Crítica, 1988, p.19-20.
[11] Funari, op. cit., 1988, p.14.
[12] “...exprime uma atitude diante dos fatos sociais baseada no princípio filosófico segundo o qual tudo o que existe numa dada sociedade tem um sentido, um significado...” in: Dicionário de Ciências Sociais. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987, p.503.
[13] “a ecologia  sócio-cultural parte do princípio de que o estudo da adaptação de uma comunidade ou área cultural a seu meio deve levar muito em conta seu nível de complexidade. A maior simplicidade cultural corresponde maior condicionamento ao meio. Este, por sua vez, afeta a distribuição da população, além de dispor em certa forma as terras, flora e fauna” in: Idem, 1987, p.380.
[14] Hodder, op. cit., 1988, p.91.
[15] Lumbreras, op. cit., 1981, p.15.


OBS: Fotos de acervo próprio.

3 comentários:

  1. CONSIDERO MUITO BOA ESSA ANÁLISE HISTÓRICA POSSIBILITANDO ASO NÃO ARQUEÓLOGOS UMA COMPRENSÃO DA ARQUEOLOGIA DE UM MODO HOLÍSTICO.

    BENEDICTO RODRIGUES
    DIRETOR DO CBA
    sobenet@gmail.com

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  2. Bom trabalho.A América latina precisa descobrir a sua unidade.Quem sabe pelos caminhos da arqueologia?

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  3. Muito obrigado e acredito sim que a arqueologia auxiliará nisso e em muito mais.

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