domingo, 22 de abril de 2012

FEITIÇARIA, BRUXARIA E O PACTO DEMONÍACO

Os espanhóis que cruzaram o Atlântico trouxeram em seu imaginário medos, crenças, bruxos e demônios com os quais povoaram o Novo Mundo. Essas manifestações faziam parte de um aparato cognitivo simbólico há muito difundido[1]. Vários escritores se dedicaram a elaborar obras que explicassem a presença do mal personificado em figuras demoníacas, necessariamente acompanhadas de bruxos e bruxas, fiéis seguidores das artes maléficas. Entre eles, podemos destacar os dominicanos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, que escreveram um manual para identificar e castigar bruxas, que contavam com o auxílio do Demônio e a permissão divina para realizar seus malefícios[2]. Assim, o medo das forças diabólicas foi transposto para a América pelos espanhóis quinhentistas, que tinham familiaridade com o sobrenatural, o desconhecido e temido mundo das trevas e seus personagens fantásticos. Nesse contexto cristalizou-se a idéia de bruxaria, que tinha a participação de magos, feiticeiros e bruxos conspirando contra os cristãos e, por isso, a prática de magia, adivinhação e curandeirismo foi sendo associada a heresia pelos religiosos e isso se consolidou no imaginário europeu.
O medo do desconhecido, do mar e dos monstros marinhos acompanhou esses homens que cruzaram o oceano (DELUMEAU, 1990, p.50-51), que traziam também a obrigação de propagar a fé católica e conseqüentemente a persecução àqueles que conspirassem contra a cristandade. Chegando à América, não hesitaram em matar, saquear e conquistar, material e espiritualmente, os povos aqui encontrados, pois como afirmou Sepúlveda era o correto a se fazer em relação a esses bárbaros, que de homens ímpios e servos do demônio, passariam a ser civilizados, cristãos e cultores da verdadeira fé[3].
Para que o domínio fosse completo, esses homens preocuparam-se em compreender os signos do “outro”, a linguagem, costumes e tudo mais que pudesse proporcionar poder e sucesso em suas investidas de conquista[4]. Assim, apareceram as primeiras descrições da sociedade andina, seus grupos étnicos, formas de subsistência, religiosidade, esta última, equiparada aos modelos demonológicos europeus. Os responsáveis pelo espaço sagrado desses povos foram transformados em bruxos e feiticeiros (SOUZA, 1993, p.28), como poderemos comprovar na descrição de Polo de Ondegardo:
Otro gênero de hechizeros auía entre los Índios, permitidos por los Ingás en cierta manera, que son como brujos. Que toman la figura que quieren y van por el ayre en breue tiempo, mucho camino; y ven lo que passa, hablan don el demonio, el qual les responde en ciertas piedras, ó en otras cosas que ellos veneran mucho (1916 [1571], t.III, p.29).

Percebe-se que os elementos simbólicos familiares aos europeus foram utilizados para interpretar as crenças nativas e por isso, bruxos voavam e davam sinais de lealdade ao demônio.
Iniciou-se a partir do século XVI no vice-reinado do Peru a onda persecutória contra a bruxaria e manifestações malignas que deveriam ser suprimidas, atingindo todo aquele que atentasse contra a cristandade, fosse protestante, cristão-velho ou novo, ou até mesmo indígena neófito na fé cristã. Muito embora a partir da Real Cédula de 1571 de Felipe II, os índios não pudessem ser processados pela Inquisição, mesmo assim, foram perseguidos e ficaram sobre a alçada das autoridades civis ou episcopais. Para esse fim, foram criadas as campanhas de extirpação de idolatrias, que tinham por objetivo terminar com todos os ídolos e rituais indígenas, visto que estes contradiziam o cristianismo, ao adorarem criaturas no lugar do Criador, o Deus cristão (DUVIOLS, 1986, p.XXVII).  Isso simbolizou a tentativa de cristianizar o imaginário indígena, em que seus deuses foram transformados em demônios (GRUZINSKI, 1991, caps. IV e V). Seguindo o modelo demonológico da Inquisição européia, perseguiram-se também aqueles que praticavam malefícios, sendo acusados de bruxaria[5].
Na análise específica de bruxaria, feitiçaria, demônio e outros conceitos pertinentes ao estudo de fontes inquisitoriais e de extirpação de idolatrias foi criada uma acepção compreensível a espanhóis e indígenas, a partir do encontro de distintos imaginários culturais. Corroborando as idéias de Jacques Le Goff (1994) e de Cornelius Castoriadis (1982) podemos afirmar que o imaginário não pode ser examinado como algo estático, visto que se origina de imagens verbais, mentais e visuais que são socialmente construídas. O imaginário está atrelado ao universo social e político e por isso, quando analisamos processos inquisitoriais e de idolatrias, no vice-reinado do Peru, podemos perceber como as crenças demoníacas e as práticas mágicas estavam, não só relacionadas com a necessidade de interpretar o mundo sobrenatural, mas também representaram o modo de mostrar insatisfação com o sistema colonial por parte dos grupos populares e as tensões sociais do cotidiano, onde Estado e Igreja precisavam manter seu poder e a coesão da sociedade.

a.      Alguns inimigos da cristandade

“Hechizar: cierto género de encantanción con que ligan a la persona hechizada de modo que le pervierten el juicio y le hazen querer lo que estando libre aborrecería. Esto se haze con pacto del demonio expresso o tácito” (COBARRUVIAS OROZCO, 1610, p.680).


Para compreendermos o aparecimento das ondas persecutórias à bruxaria na Europa, faz-se necessário contextualizar sua origem, visto que nesse período ocorreram crises e vitórias, invenções e reformas, mas que não deixava de ser um mundo de medos, devido às doenças que grassavam e ao imenso número de guerras vigentes, levando à necessidade de se obter explicações para esse conjunto de animosidades. Os teólogos foram os primeiros a tentar explicar tais fatos através da crença no sobrenatural e no apocalíptico e por volta do século XIV começaram a aparecer os temores aos inimigos da cristandade, que sob a liderança do demônio, conspiravam para sua derrocada, e os judeus, mulheres, muçulmanos e, posteriormente, com a chegada dos europeus à América, os indígenas idólatras, entre outros, faziam parte desse séquito (COHN, 1997; DELUMEAU, 1990). Devemos advertir, no entanto, que a crença nas bruxas não foi uma invenção da Igreja como afirma Russel Hope Robbins (1974), e sim, um antigo fenômeno universal relacionado com o anseio de conseguir, através de ajuda sobrenatural, modificar o cotidiano[6].
A repressão a essas atividades cresceu na Europa por volta dos séculos XV a XVII, quando começaram a aparecer inúmeros tratados demonológicos que reinterpretaram a bruxaria popular, que agora estava associada necessariamente ao pacto demoníaco. Isso se deu porque o demônio sempre esteve ligado a uma interpretação negativa do paganismo por parte dos cristãos. Ele tomou forma a partir dos séculos XI-XII e iconograficamente passou a ser identificado e virou uma verdadeira obsessão, transformando-se naquele que castigava e seduzia os homens, levando-os à perdição (DELUMEAU, 1990, p.239-240). Proliferaram, graças também à invenção da imprensa, as publicações demonológicas que tinham por objetivo ensinar a humanidade a se defender das armadilhas desse ser maligno, que era responsável pelas secas, enfermidades e todo tipo de desgraça que se abatesse sobre a indefesa cristandade. Algumas dessas obras tiveram inúmeras edições, como o já citado Malleus Maleficarum, um verdadeiro manual de caça às bruxas que foi reeditado mais de 80 vezes em menos de 200 anos (KRAMER, SPRENGER, 2001).



No caso específico da Espanha, Trevor Roper defende que essa perseguição teria sido mais branda por conta da intolerância religiosa contra os judeus (1981). Já Brian Levack salienta que tal aparente indulgência da Inquisição espanhola para com os casos de bruxaria nada tinha a ver com os judeus, e sim, com a forma como tal delito era compreendido naquele momento (1995, p.286-287), ou seja, por conta do ceticismo que dominou a mentalidade dos Inquisidores ibéricos, que conforme Gustav Henningsen trataram a bruxaria como mera superstição e os castigos variavam de simples reprimendas a desterros perpétuos (1994, p.11-12). Henry Kamen mostrou que no começo do século XVI, quando a Inquisição iniciou as investigações em torno da bruxaria enquanto heresia, a repressão a esse delito prosseguia em mãos dos tribunais do estado. A relutância dos inquisidores em intervir neste assunto estava em parte motivada pela dúvida se na bruxaria existiam elementos heréticos e por isso, não foi considerada um grande problema até fins do século XV (1999, p.260).
O mais importante para a Inquisição espanhola e para as justiças seculares e eclesiásticas era diferenciar claramente bruxaria, tida como diabólica, de feitiçaria. A bruxaria podia atuar à distância, não havendo a necessidade de filtros, objetos ou orações, pois bastava o desejo do bruxo para que o malefício se realizasse. Isso correspondia ao imaginário cristão de pacto com o Demônio, a quem se entregava a alma e se prestava um verdadeiro culto de latria (EYMERICH, 1993, p.55), renegando a fé cristã, em troca da aquisição de poderes sobrenaturais malignos. Já a feitiçaria necessitava de um meio para alcançar seu objetivo, seja ele material ou simbólico, como por exemplo, o uso de amuletos, animais, imagens, poções, entre outros, e do ritual para que se realizasse o desejo do feiticeiro ou da pessoa para quem o feitiço era feito, visto que podia ser para curar ou deixar doente, ter sorte ou azar, prever o futuro e muito mais. Como a bruxaria diabólica era considerada voluntária, negativa e seu objetivo era praticar o mal, normalmente seus praticantes se agrupavam no sabbat[7] para adorar o Diabo, praticavam canibalismo e grandes orgias, ou seja, uma série de comportamentos simbolicamente contrários ao cristianismo[8]. Sendo assim, além do pacto demoníaco, a bruxaria estava associada ao maleficium, a magia maléfica, que aparece na Bula Summis Desiderantes de Inocêncio VIII (1484):
“...muitas pessoas de ambos os sexos, a negligenciar a própria salvação e a desgarrarem-se da Fé Católica, entregaram-se a demônios, a Íncubos e a Súcubos, e pelos seus encantamentos, pelos seus malefícios e pelas suas conjurações, e por outros encantos e feitiços amaldiçoados e por outras também amaldiçoadas monstruosidades e ofensas hórridas, têm assassinado crianças ainda no útero da mãe, além de novilhos, e têm arruinado os produtos da terra, as uvas das vinhas, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruído homens, mulheres, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreirais, pomares, prados, trigo e muitos outros cereais; estas pessoas miseráveis ainda afligem e atormentam homens e mulheres, animais de carga, rebanhos inteiros e muitos outros animais com dores terríveis e lastimáveis e com doenças atrozes, quer internas, quer externas; e impedem os homens de realizarem o ato sexual e as mulheres de conceberem, de tal forma que os maridos não vêm a conhecer as esposas e as esposas não vêm a conhecer os maridos; porém, acima de tudo isso, renunciam de forma blasfema à Fé que lhes pertence pelo Sacramento do Batismo, e por instigação do Inimigo da Humanidade não se escusam de cometer e de perpetrar as mais sórdidas abominações e os excessos mais asquerosos para o mortal perigo de suas próprias almas, pelo que ultrajam a Majestade Divina e são causa de escândalo e de perigo para muitos” (KRAMER, SPRENGER, 2001, p.43-44).

A partir daí, a bruxaria passou a ocupar um lugar central no campo das acusações de práticas mágicas ante os tribunais inquisitoriais, pois os diversos maleficium acima citados, segundo Keith Thomas, colocavam em risco a sobrevivência da humanidade, tanto no que concerne à reprodução da espécie como à sua subsistência. A grande persecução à bruxaria tomou fôlego depois da criação e divulgação de uma série de discursos demonológicos e também por conta da fragilidade que vivenciavam os fiéis, agora indefesos contra o maleficium, pois durante a Idade Média eles se sentiam protegidos pelo ritual da Igreja que possuía certo magismo, mas conforme a Igreja foi reformulando sua própria doutrina e liturgia, também houve um endurecimento contra as práticas mágicas tanto entre os fiéis como nos próprios ritos cristãos (1999, caps.3 e 15).
Nessa loucura de combater severamente a bruxaria tomou parte quase toda a cristandade, sendo muitos os nomes importantes da época que participaram dessa histeria. Pedro de Ciruelo pediu em 1548, em seu livro sobre superstições e feitiçarias que “as bruxas malditas” fossem tratadas “com rigor” pelos juízes. Francisco de Vitória dedicou um curso (1539-40) a esse tema e embora ele duvidasse de grande parte das coisas que se contava sobre bruxas, não deixava de admitir a possibilidade de sua existência. Também o jurista Jean Bodin, responsável pela obra Demonomanía de las brujas (1580), acumulou grandes conhecimentos em suas perseguições e foi responsável pela aprovação do uso do tormento, das delações anônimas e dos testemunhos de crianças nos casos de bruxaria (FERNÁNDEZ ÁLVAREZ, 1995, p.113).
Sabe-se que na Europa as mulheres foram particularmente perseguidas pela Inquisição sob acusação de bruxaria e explica Levack:
“Hay sin embargo, motivos para creer que el estado de soltería de muchas brujas contribuyó al menos indirectamente a su penosa situación. En una sociedad patriarcal, la existencia de mujeres no sometidas ni a un padre ni a un marido era motivo de inquietud, cuando no de miedo, y no es irrazonable suponer que tanto los vecinos que acusaban a tales mujeres como las autoridades que las sometían respondían a tales miedos. Los mismos acusadores podían haber llegado a la conclusión de que al margen de la edad, las mujeres no casadas eran más susceptibles que las mujeres casadas de ser seducidas por un demonio encarnado en un varón” (1995, p.191).

Não resta dúvida que um número maior de mulheres foi levado diante do Tribunal do Santo Ofício, mas a magia, a bruxaria e a feitiçaria também foram atividades masculinas, pois na iconografia dos séculos XVI e XVII eles aparecem fazendo parte do sabá, contraindo pactos com o demônio e realizando todas as tarefas próprias desse imaginário. Podemos concluir que em realidade qualquer um que representasse a transgressão social nesse mundo repleto de superstições acabava sofrendo os rigores da Inquisição.

b.      A invenção da bruxaria e as concepções demonológicas aplicadas aos indígenas neófitos

Depois de analisada a diferença entre feitiçaria e bruxaria na Europa, passamos ao estudo da aplicação dessas crenças quando da chegada dos espanhóis à região andina. A persecução à bruxaria e feitiçaria no vice-reinado do Peru se dá em três grandes momentos, pois desde a chegada dos espanhóis até meados do século XVII, período em que na Europa acontecia a “caça às bruxas”, a Reforma e a Contra-Reforma, houve uma grande preocupação com a bruxaria diabólica, sendo que logo os índios ficaram fora da jurisdição inquisitorial e o Santo Ofício se dedicou a perseguir europeus, africanos, judeus e mouros por tal heresia. Os indígenas não escaparam dessa histeria, pois para eles foi criada a Visita de Idolatrias, que também buscava descobrir idólatras, feiticeiros e até mesmo aqueles que tivessem pacto com o demônio. Num segundo momento, que se estendeu do final do século XVII a meados do XVIII, mesmo com o conservadorismo implantado pela Contra-Reforma, a obsessão pela bruxaria diminui devido à mudança do imaginário espanhol, que se reflete no processo de alteridade. O conhecimento do “outro” permite melhorar as relações entre índios, brancos, negros e mestiços e até o pacto demoníaco deixa de estar tão presente nos processos, dando lugar a um número maior de acusações por feitiçaria e curandeirismo. O último grande momento de controle das práticas mágicas se dá no final do século XVIII até à Independência. Nessa época a sociedade do vice-reinado do Peru já era mestiça e na Espanha começa a despontar o Iluminismo, o que traz mudanças na forma de ver e tratar tais delitos. Sob o governo dos Bourbons, essas práticas passam a ser consideradas problema do Estado e vistas como ignorância, superstição, curandeirismo e engano. Pouco a pouco, as acusações por bruxaria diabólica desapareceram e apenas em lugares longínquos persistiram por um tempo a mais (CEBALLOS GÓMEZ, 2002, p.219-221).
Toda essa preocupação dos espanhóis em controlar as superstições e extirpar as heresias está atrelada ao medo do desconhecido e, sobretudo, porque para eles o encontro com outras culturas foi bastante inquietante. Como afirmou Gustav Henningsen, a crença nas bruxas é uma espécie de mitificação dos grupos socialmente marginalizados (1983, p.349) e corroboramos esse posicionamento verificando que os processos inquisitoriais e de idolatrias, em geral, tratam de acusações contra brancos pobres, mestiços, negros, índios, que são “intermediários culturais” (VOVELLE, 1991, p.207-224), pois transitam entre diversos mundos, na fronteira entre a cultura popular e de elite. Normalmente os acusados de bruxaria eram feiticeiros, curandeiros, envenenadores ou aqueles que de alguma forma violassem as convenções sociais e que por isso, deveriam ser castigados numa tentativa de fazê-los retornar à ordem social.
Para compreendermos melhor o imaginário espanhol transladado ao vice-reinado do Peru e que foi aplicado ao mundo indígena, é interessante antes de tudo fazer um estudo dos léxicos produzidos nessa época e nos quais aparecem os significados em quéchua e aymara do que estes europeus concebiam como bruxaria, feitiçaria, bruxos(as), curandeiros(as), demônio e outros vocábulos relativos a essa tarefa de endemoniar os cultos e práticas dos povos andinos. Quando são analisados processos em que indígenas foram acusados de praticarem feitiços influenciados pelo demônio, mesmo estando fora da alçada da Inquisição e sabendo que os tribunais seculares não tinham interesse em “criar” testemunhos e verdades, visto não usarem a sistemática inquisitorial e nem terem obsessão em relação aos delitos da fé, que necessariamente procuravam informações sobre o pacto, o sabá e outras características da bruxaria, mesmo assim, encontram-se casos em que o réu foi acusado de ser “bruxo” e praticar “feitiços” com o auxílio da figura satânica, o que demonstra que o uso dos vocábulos bruxaria e feitiçaria em relação aos indígenas não necessariamente tinham a mesma concepção de quando utilizados pelos inquisidores em relação aos processados pelo Santo Ofício, mas percebe-se sim uma simbiose dessas crenças.
Um pequeno exemplo, antes de começarmos a examinar os dicionários da época, é o caso do índio Domingo Guaman Iauri, de Ambar, datado de 1662, em que este foi acusado de ser “bruxo” e de sair à noite para suas “bruxarias”[9] pelo licenciado Juan Sarmiento de Vivero, visitador geral e de idolatrias do Arcebispado de Lima. Ao longo do processo ele é tido como um feiticeiro que foi enganado pelo demônio:
...en ser hechisero idolatra y em aber usado de supersticiones de hechisos de yerbas, aguas, tierras, polbos, sebo de llama, coca, lanas de colores, pajaros y demas cosas de que los hechiseros usan engañados del Demonio nuestro enemigo y en que dixere la verdad que el dicho señor visitador no se espantara de que como indio incapas el Demonio haia hecho caer //f.r// en semejantes errores i que pida misericordia con arrepentimiento i dolor de todo coraçon de aber ofendido a Dios si a caido en semejantes culpas…(Idem, p.457).

A acusação correspondia a práticas de feitiçaria e não de bruxaria, visto que eram usados filtros, objetos e outros meios materiais ou simbólicos para alcançar determinados objetivos e não aparece menção ao pacto demoníaco, e sim, que o índio sofreria com os embustes do demônio, o que demonstra uma mistura de representações.


Manuscrito do acervo de Idolatrias do Arquivo Arcebispal de Lima.

Trataremos de verificar alguns dos significados atribuídos a essas palavras tão expressivas do imaginário europeu e que não necessariamente encontraram correspondentes na cultura andina. A noção do mal encarnado em uma figura satânica, por exemplo, era européia, enquanto que para os indígenas o bem e o mal eram complementares. Um exemplo disso são os hapiñunos, que Gonzalez Holguín definiu como fantasmas em seu dicionário, mas ao mesmo tempo os identificou com forças diabólicas[10], assim como o fez Pachacuti, o cronista que relatou as andanças de Santo Tomás pelos Andes e de como este derrotou essas figuras malignas [11]. Isso demonstra a importância de se estudar os léxicos desse período para podermos perceber o quadro social e mental que neles se revela.
A tradição dos estudos de quéchua foi iniciada em 1560 pelo frade andaluz Domingo de Santo Tomás, que publicou em Valladolid a Gramática o Arte de la lengua general de los índios de los reynos del Peru e no mesmo volume encontra-se o Lexicon, o Vocabulário de la lengua general del Perv, co[m]puesto por el Maestro F[ray] Domingo de S[anto] Thomas de la orden de S[anto Domingo] (2006, p.9). Nesse léxico podemos encontrar a primeira lista de palavras quéchua com seus equivalentes espanhóis para utilização nos primeiros momentos da conquista. Ele batizou Runa Simi ou língua Imperial do Tahuantinsuyu com o nome de quíchua, que se conservou mesmo com algumas diferenças fonéticas ou ortográficas. O entusiasmo desse doutrinador de Chicama e de Chincha pela aprendizagem do quéchua se deve à grande tarefa de captação da alma indígena para mesclá-la com o espírito cristão e ocidental (PORRAS BARRENECHEA in GONZALEZ HOLGUIN, 1989 [1608], p.V-VII).
A época de Toledo é favorável ao desenvolvimento dos estudos de quéchua para proporcionar maiores conhecimentos sobre os grupos nativos. A história, os mitos e a organização do povo inca transparecem através dos vocábulos simbólicos. No final do século XVI continua-se ampliando a análise da língua e sua estrutura, assim como aumentam o número de vocábulos conhecidos que foram apresentados por Gonzalez Holguin (Idem, 1989) e Torres Rubio (s/d, [1619]). Essa é a época dos sermões de Ávila (1608), dos estudos filológicos de Garcilaso (1609) em seus Comentarios Reales e das crônicas bilíngües de Guaman Poma de Ayala (1615) e Santa Cruz Pachacuti (1613).
Gonzalez Holguín publicou em 1607 sua Gramatica e em 1608 seu Vocabulário, sendo este último de grande valor para os estudos de quéchua devido à grande quantidade de vocábulos e suas inovações fonéticas. Sua intenção era usar os idiomas indígenas como instrumentos de cristianização (PORRAS BARRENECHEA in GONZALEZ HOLGUIN, 1989, p.XIII; DEDENBACH-SALAZAR SÁENZ, 1985, p.22).
Torres Rubio teve grande prestígio no século XVII, pois dominou o quéchua, o aymara e o guarani. De todos esses idiomas publicou Vocabularios, como a Arte de la lengua aymara, em 1616; Arte de la lengua quíchua, em 1619; e a Arte de la lengua guarani, em 1627. Durante trinta anos se dedicou ao ensino da língua aymara em Chuquisaca e Potosi, demonstrando grande habilidade didática. Devido ao seu conhecimento lingüístico adquiriu grande fortuna, pois suas obras eram sucintas e de fácil consulta (PORRAS BARRENECHEA in GONZALEZ HOLGUIN, 1989, p.XIII e XIV ).
Ávila foi um dos melhores escritores da língua quéchua. Nascido em Cuzco em 1573, se educou no colégio jesuítico da cidade e entrou para a carreira eclesiástica em 1596. Como cura de San Damián de Huarochiri, lutou contra os ritos gentílicos sobreviventes, acabando com ídolos, conopas (objetos sagrados caseiros) e amuletos. Predicou contra os deuses mais venerados da região, entre eles, as montanhas Pariacaca e Chaupiñamoc e ao mesmo tempo foi coletando as lendas andinas na própria língua original. Tendo sido acusado de cometer abusos contra os índios, conseguiu defender-se e pediu para ser transferido para outra paróquia. Em 1610 foi nomeado pelo Arcebispo de Lima, Lobo Guerrero, como primeiro Visitador de Idolatrias. Nessa função deu prosseguimento às suas pesquisas sobre a sobrevivência da antiga fé nos povoados de San Damián, Mama, San Pedro de Casta, Huarochiri e San Lorenzo de Quinti. Profundo conhecedor de quéchua, predicava todos os dias aos indígenas em seu próprio idioma (PORRAS BARRENECHEA in GONZALEZ HOLGUIN, 1989, p.XVII; DEDENBACH-SALAZAR SÁENZ, 1985, p.43).
A obra Vocabulário em la lengua general del Peru llamada quíchua,y en la lengua española publicada em 1586 tem por autor Antonio Ricardo, mas ele próprio indica que não o é. Essa obra foi atribuída a vários autores, como: González Holguín, Santo Tomás, Torres Rubio, Blas Valera e Juan Martinez. Quase todos os quechuístas da época foram apontados como presumíveis autores, mas ainda não se chegou a nenhuma conclusão plausível (ESCOBAR RISCO, in RICARDO, 1951 [1604],  p.XII). Essa obra foi preparada a pedido do III Concílio Provincial de Lima (1583) com o propósito de facilitar a catequização dos indígenas ( Idem, 1951, p.10).
Como pudemos perceber, a produção desses léxicos tinha como objetivo principal facilitar o processo de evangelização dos povos indígenas. Por isso, eles são de grande ajuda quando se analisam processos inquisitoriais e de extirpação de idolatrias. Diante de tais informações, consultamos alguns desses dicionários e encontramos a tradução de vocábulos importantes para compreender essa mescla de imaginários, como por exemplo, em aymara bruxo ou bruxa, feiticeiro e demônio aparecem assim identificados por Ludovico Bertonio:
Bruxo o bruxa que daña con su vista permitiendolo Dios. Hukhini. + Y dañar assi: Hukhiquiptatha.
Hechicero. Layca, tala, tata, troqqueni, hamuni, hamuttani, vel um. Comunes, a varon y mujer.
Demonio. Supayu. Antiguamente decian: Hahuari que es fantasma. + Endemoniado: Supayona maluta, vel alcomaata haque (2006 [1612], p.126, 256, 181).
No diccionario quechua de Diego Gonzalez Holguin, as mesmas palavras aparecem assim:
Bruxo Bruxa. Caucho, o el ojeador.
Hechizero. Humu.
Demonio. Çupay. Endemoniado, çupaypa yaucusccan. (1989 [1607], p.438, 543 e 477).

Alli zupay. angel bueno; mana alli zupay – angel malo (SANTO THOMAS, 2006 [1560], p.148 e 36).

Nos léxicos do século XVI e XVII bruxos e feiticeiros são tidos como semelhantes e o demônio aparece como anjo fiel à divindade e também como rebelde. Certamente essa interpretação vai influenciar cronistas, religiosos e também os inquisidores e extirpadores de idolatrias. Isso significa que nos processos de extirpação de idolatrias a diferença entre feitiçaria e bruxaria, tão importante na Europa e também para a Inquisição, é bastante discutível em função de questões lingüísticas e também dos interesses da Igreja e da Coroa em manter a ordem social.
A demonização dos costumes andinos foi a forma que os sacerdotes espanhóis encontraram para interpretar o desconhecido e fazer com que os indígenas se afastassem dessas crenças, incutindo neles noções, como a do pecado. É por isso, que nos documentos dos séculos XVI e XVII, aparecem as representações desse mundo multifacetado, em que figuras do bem foram convertidas em seres diabólicos, indivíduos que conheciam o efeito medicinal das ervas, eram tidos por feiticeiros e sacerdotes nativos foram convertidos em bruxos.


MANUSCRITOS
ARQUIVO ARCEBISPAL DE LIMA
AAL, Idolatrias, Leg. IV, exp.8.

FONTES
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[1] Imaginário é o conjunto de “estilos y las técnicas de expresiones, memorias, y las percepciones del tiempo y del espacio” que uma comunidade de pessoas compartilha (GRUZINSKI, 1993, p.3). Sobre imaginário e simbolismo ver também: BACZKO, 1985; ELIADE, 1996; DURAND, 1995; CASSIRER, 1989; GRUZINSKI, 2003.
[2] “...é inútil argumentar que todo o efeito das bruxarias é fantástico ou irreal, pois não poderia ser realizado sem que se recorresse aos poderes do diabo; é necessário, para tal, que se faça um pacto com ele, pelo qual a bruxa de fato e verdadeiramente se torna sua serva e a ele se devota - o que não é feito em estado onírico ou ilusório, mas sim concretamente: a bruxa passa a cooperar com o diabo e a ele se une”. (KRAMER, SPRENGER, 2001, p.57).
[3] “As justas causas de guerra contra os índios, segundo o Tratado Democrates Alter de Juan Ginés de Sepúlveda - 1547” (SUESS, 1992).
[4]  Sobre alteridade ver: TODOROV, 1988; HARTOG, 1999.
[5] O início da perseguição européia à bruxaria deu-se após a bula papal de Inocêncio VIII Summis Desiderantis Affectibus, de 1484. (KRAMER, SPRENGER, 2001, p.43-46).
[6] Por muito tempo, a bruxaria foi alvo de estudos de antropólogos ou historiadores das religiões, mas a obra de Evans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande favoreceu a aproximação da antropologia com a história e hoje esses estudos se multiplicaram facilitando uma compreensão, inclusive, do fenômeno da “caça às bruxas” (EVANS-PRITCHARD, 1976).
[7] “La idea del sabbat, una junta de brujas con el fin de rendir culto al Diablo en cuevas o descampados durante la noche, se remontaba hasta da antigüedad clásica con las prácticas dionisíacas y debía de estar muy divulgada en los días anteriores al siglo IX, como lo demuestra el Canon episcopi…”; “Por otro lado, olvidando la tradición de civilizaciones antiguas, hemos de tener presente que los demonólogos concebían el sabbat y demás actos rituales de las brujas como el mayor escarnio que el hombre había podido imaginar de la liturgia cristiana. El sabbat era la ceremonia última y máxima del culto humano al diablo y, por tanto, merecía especial atención. Cientos de magnos tratados se compusieron describiéndonos minuciosamente todos los actos y sus variaciones hasta completar un cuerpo doctrinal; se describió el lugar y el tiempo en que se celebraba el sabbat, la forma en que se presentaba el diablo, los medios por los que llegaban las brujas al lugar de cita, los ungüentos que se aplicaban, el momento en que se terminaba…” (FLORES ARROYUELO, 1985, p.90 e 92).
[8] Sobre esse assunto vale consultar as obras de: KRAMER, SPRENGER, 2001; GINZBURG, 1988 e 1991; HENNIGSEN, 1983; CLARK, 1997; CARO BAROJA, 1995; CEBALLOS GÓMEZ, 2002.
[9] “Agustin Capcha fiscal mayor paresco ante vuestra merced como mas a mi dericho combenga digo que mi querello contra Domingo Guaman Yaure endio residente en este pueblo de Ambar al qual acoso criminalmente permiso lo necesario refiriendo al caso digo que el dicho endio tengo noticia por muy cirto que es brujo y que sale de noche a sus brujerías hecho relumbrante al modo de candela que los an visto unas endias…” “Querella de Agustin Capcha, fiscal contra Domingo Guaman Sauri, indio del pueblo de Aillon, sobre que es brujo”. Ambar, 1662. AAL, Idolatrias, Leg. IV, exp.8. (GARCÍA CABRERA, 1994, p.453).
[10] “Hapuñuñu, o hapiyñuñu. Fantasma, o duende que solía aparecerse con dos tetas largas que podían asir dellas”. (GONZALEZ HOLGUIN, 1989 [1607], p.150). “Phantasma por el Demonio que se aparecia con pechos largos de mujer. Hapiy ñuñu.” (Idem, p.629).
[11] “Y passado algunos años, después de aberlos ydo y echado a los demonios happiñuños y achacallas deste tierra , an llegado entonçes a estas provincias y reynos de Tabantinsuyo un hombre barbudo, mediano de cuerpo u con cabellos largos y con camissas largas, y dizen que era ya hombre passado, más que de moço, que trayeya las canas, y <era flaco> el qual andaba con su bordón y era que enseñaba a los naturales, con gran amor, llamándoles a todos hijos e hijas, el qual no fueron oydos ni hecho casso de los naturales, y quando andaba por todas las provincias an hecho muchos milagros etc. Bisibles, solamente con tocar a los enfermos los sanaban. El qual no trayeya enterés ninguno, ni trayeya hatos, el qual dizen que todas las lenguas hablava mejor que los naturales e le nombravan Tonapa o Tarapacá <a este barón les llamavan> Uiracocham Pacha Yachachip cachan o pachaccan y bicchai camayoc, cunacuy camayoc los yndios de aquel tiempo dizen que suelen burlar deziendo tan parlero hombre. Aunque los predicava siempre, no fueron oydos, porque los naturales de aquel tiempo no hizieron caudal ni casso  del hombre. Pues se llamó a este barón Tonapa Uiracochampa cachan, pues ¿no era este hombre el glorioso apóstol Sancto Thomás?” (PACHACUTI YAMQUI SALCAMAYGUA, 1993. p.188 e 189).


NOTA: Artigo recentemente publicado. PORTUGAL, Ana Raquel . FEITIÇARIA, BRUXARIA E O PACTO DEMONÍACO. Maracanan, v. VII, p. 138-153, 2011.

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