terça-feira, 23 de agosto de 2011

A CAÇA ÀS BRUXAS ANDINAS NO SÉCULO XVII


     
Cronistas espanhóis associaram a religião indígena a um culto ao diabo, chamando-os de idólatras. Conseqüentemente, durante o século XVI começam no Peru as campanhas de extirpação de idolatrias, que tinham por objetivo terminar com toda a espécie de ídolos e rituais, considerados por eles, heréticos. As mulheres foram particularmente perseguidas e acusadas de praticarem feitiçaria, pois desempenhavam um papel importante de resistência frente à colonização espanhola, já que eram dogmatizadoras da religião indígena e revitalizadoras de antigas crenças.

Crônica que guiou os extirpadores de idolatrias

A idolatria contradizia o cristianismo, visto que repousava sobre uma adoração de criaturas, enquanto o cristianismo pregava a adoração do Criador, ou seja, Deus[1]. Para tanto, seguiu-se em terras andinas, os passos da inquisição européia, utilizando a repressão para suprimir, extirpar todo e qualquer vestígio de religião que não fosse a cristã.
Obras, como o Directorium inquisitorum[2] ou Manual dos inquisidores e o Malleus maleficarum[3], serviram para fundamentar os Concílios de Lima[4], que eram os regulamentos de combate às heresias indígenas. O Directorium descrevia as categorias de heréticos a serem reconciliados ou “relaxados ao braço secular”, quando necessário fosse. Os autores de Malleus, atribuíram às mulheres as artes maléficas, visto serem estas marcadas pelo pecado original de Eva e mais fracas diante das tentações do demônio. Essa obra tratou em detalhes a maneira demoníaca como as bruxas agiam e como era possível identificá-las, servindo de guia para os inquisidores e aconselhando-os para que não aceitassem o arrependimento como motivo para não condená-las à fogueira, visto serem elas perniciosas à cristandade.
Nos três Concílios de Lima, datados respectivamente de 1551, 1567 e 1568, foram tratados os principais objetivos da extirpação de idolatrias e a forma como deveriam ser castigados aqueles que fossem acusados de idólatras. Chamou-se a atenção, para que fossem perseguidos com mais intensidade os feiticeiros e dogmatizadores, devendo estes serem submetidos aos mais severos castigos, inclusive a pena de morte.

Feiticeiro na crônica de Guaman Poma de Ayala


No início da campanha de extirpação, houve disputas entre o clero regular, que tinha uma postura indigenista favorável a uma evangelização por persuasão e não pela violência[5], e o clero secular, favorável às extirpações. Nesse período, criou-se o cargo de juiz visitador, com o intuito não só de extirpar a religião andina, mas também de liquidar os doutrineiros regulares, submetendo-os ao seu poder e acusando-os de explorarem a população indígena e de não conhecerem as línguas vernáculas, o que dificultava a predicação.
De 1610 a 1660, a extirpação de idolatrias teve seu período de maior atividade, e apesar dos confrontos entre o clero regular e o clero secular, a partir de 1610, a Companhia de Jesus conseguiu empreender sua campanha de cristianização. Seguindo uma política missioneira relativa à zona andina, conforme foi tratada por José de Acosta[6],  e usando critérios indigenistas e coletivistas, os jesuítas conseguiram alcançar a elite indígena através do Colegio del Príncipe, em Lima, onde os filhos de curacas (chefes locais) eram educados. Para além disso,  criaram a prisão para feiticeiros, a Casa de Santa Cruz, com a finalidade de suprimir a elite de sacerdotes da religião indígena. A Companhia praticamente dominou religiosa e culturalmente o território peruano nesse período.
A Inquisição inicial queria tão somente acabar com as heresias de indivíduos já integrados à cultura hispânica, enquanto a extirpação, segundo Pierre Duviols, era a filha bastarda da inquisição, instalada em Lima em 1571 e da evangelização, pois tinha por projeto a destruição das religiões andinas[7].
Arcebispo Lobo Guerrero - responsável pelo início das campanhas de extirpação de idolatrias

Houve nesse período uma tentativa de aculturação[8] da população indígena, por parte dos visitadores, e por isso, as “bruxas” mais perseguidas eram as dogmatizadoras, visto serem as que promoviam uma contra-evangelização[9]. 
A tentativa de ocidentalização da América se deu através da evangelização e da extirpação de idolatrias, através da reprodução de lógicas mentais da velha Europa no Novo Mundo[10] e uma prova disso, é o transporte para os Andes do diabo e de sua aliada, a bruxa. Porém, o mundo andino não conhecia a noção do mal encarnado em uma figura satânica, e sim uma visão dialética em que o bem e o mal são complementos. Houve sim, uma aculturação desse termo, podendo se exemplificar com o caso dos hapiñunos, que seriam fantasmas ou duendes, que foram posteriormente transformados em forças diabólicas derrotadas por Santo Tomás, conforme os relatos de Pachacuti Yamqui [11]. Desta forma, os inquisidores conseguiam que os acusados acabassem por confessar a ligação com o diabo, pois essa noção européia acabou por mesclar-se com as estruturas simbólicas indígenas. Quanto à fragilidade moral feminina, que segundo a concepção européia, explicava a existência de um grande número de bruxas, também não está de acordo com a visão indígena, que ao contrário, conferia à mulher importante papel na manutenção e reprodução da existência social.


Ídolos dos Incas

Na sociedade andina havia conhecedores de ervas, soldadores de ossos e os curandeiros, mas como na Europa, dizia-se que esse tipo de conhecimento só era concedido aos seguidores do diabo, a idolatria, o curandeirismo e a bruxaria acabaram sendo confundidos, sendo esta última, uma invenção hispânica[12].
Por meio de tortura, os visitadores conseguiam as evidências que necessitavam para condenar o acusado, assim um grande número de curandeiros confessaram ter recebido seu conhecimentos de ervas através de pactos demoníacos.
Os deuses andinos estavam perdendo a força diante das adversidades coloniais, estavam se calando e conforme Todorov, é necessário ter o domíno dos signos para que se possa manter o poder[13]. O papel das bruxas-dogmatizadoras[14] nas comunidades, era de suma importância para a manutenção da sabedoria e rituais indígenas, pois simbolizava a resistência ao sistema colonial, fazendo com que a desestruturação do mundo andino sob a dominação espanhola, nas palavras de Wachtel,  ao contrário de ter significado uma decomposição ou o nascimento de um mundo novo, fosse a sobrevivência de estruturas antigas, apenas fora do contexto coerente em que se situavam[15].
A perseguição às bruxas, por parte dos visitadores foi tal, que podemos comprovar através da Relación de la visita de extirpación de idolatrías de Cristóbal de Albornoz[16], o número consideravelmente maior de mulheres que foram acusadas de feitiçaria, tendo sido a maioria condenada a serviços perpétuos para Igreja, podendo levar-nos também à suposição de que essa seria uma forma de escravizar mão-de-obra indígena, fato este que não desenvolveremos neste trabalho, por falta de comprovação documental suficiente.
Na obra de José de Arriaga, aparece um exemplo de deturpação de rituais indígenas extremamente significativo, que é quando este descreve a ação de feiticeiros que constituíam sociedades secretas e que atuavam quando os outros dormiam, entrando nas casas e sugando um pouco do sangue da pessoa a quem queriam matar e depois levavam esse sangue ao grupo, que o cozinhava e comia. Alguns dias depois, a pessoa de quem retiraram o sangue, morria. Adoravam o demônio, que aparecia em forma de leão ou tigre, mantinham relações homo e heterosexuais durante as festas e depois todos beijavam-lhe o traseiro[17]. Essa, nada mais é, que uma descrição da comunhão diabólica do sabá[18], ou seja, através de comportamentos ritualísticos andinos, Arriaga sugere o sabá, o que leva a crer que os bruxos andinos tenham sido bastante atormentados pelos extirpadores para que estes conseguissem esses relatos.

Sacrifício de Llama

A explanação acima, reitera a afirmação de Irene Silverblatt, sobre ser a bruxaria andina uma invenção espanhola. O processo de aculturação incutido pelos  religiosos permitiu que as estruturas indígenas fossem adaptadas às suas necessidades, mostrando mais uma vez ter sido fundamental o papel das “bruxas” andinas na manutenção das crenças indígenas.
Na maioria dos casos, a extirpação de idolatrias usou métodos de tortura, como açoites, a tosa de cabelo ou ter de andar nu encima de uma llama. O acusado poderia ter seus bens confiscados, ser condenado a trabalho provisório ou definitivo para a Igreja, como já mencionamos, ou até mesmo, à pena de morte. Na Espanha, ser condenado a andar nu era considerado humilhante, mas entre os índios não teve a mesma conotação, visto serem esses solidários contra a Igreja conquistadora. Já a tosquia de cabelo, significava uma perda imensurável, pois estes tinham valor de distinção entre os diversos ayllus (sistemas de parentesco) e os extirpadores tinham consciência disso. O confisco de bens entre uma população que vivia comunitariamente, era um fato trágico, pois significava o empobrecimento de toda a comunidade.
Durante os autos-de-fé, eram queimados ídolos e, por vezes, os “mallqui” (múmias de antepassados). Os índios não aceitavam que os corpos fossem enterrados, devido a suas convicções religiosas de haver vida após a morte, por isso, sempre que podiam, resgatavam os corpos de familiares enterrados no cemitério da Igreja. Os extirpadores, revoltados, mandavam queimar os cadáveres, porque na concepção cristã, estavam condenando-os ao inferno. Ao fazerem isso, estavam na verdade acabando com as raízes deste culto, ou seja, matando aquela cultura através de seus mortos[19].

Superstições

Como na Europa, a luta contra a heresia nos Andes teve fins políticos, pois a população que queria escapar aos rigores da Extirpação, como os que acabamos de expor, era forçada a entrar nas reduções, onde era evangelizada e controlada politicamente, facilitando a cobrança de tributo. No caso das mulheres, especificamente, a perseguição foi maior, não só por serem as “bruxas” as companheiras do diabo, conforme a mentalidade européia da época, mas por que estas eram temidas pelos espanhóis e seus aliados indígenas, por representarem a resistência ao mundo colonial, visto que tinham grande poder dentro de suas comunidades, participando de reuniões importantes do povoado e sendo inclusive temidas pelos curacas (chefes locais). Eram as detentoras da sabedoria e rituais indígenas e utilizavam esses conhecimentos para destruir o desequilíbrio provocado em seu mundo pelo domínio espanhol.



[1] DUVIOLS, Pierre. Cultura andina y represion; procesos y hechícerias. Cajatambo, siglo XVII. Cusco: centro de estudios rurales andinos “bartolomé de las casas” , 1986.p.XXVII.
[2] EYMERICH, Nicolau, PEÑA, Francisco. Le manuel des inquisiteurs. Trad. Louis Sala-Molins, Paris-La Haye: Mouton, 1973.
[3] SPRENGER, Jacob,  KRAMER, Heinrich. Malleus Maleficarum. Madrid: Colección Abraxas de Ediciones Felmar, s/d.
[4]DUVIOLS, op. cit.
[5] LAS CASAS, Bartolomé de. Del único modo de atraer todos los pueblos a la verdadera religión. (1537). México: FCE, 1975.
[6] ACOSTA, José de . De procuranda indorun salute o predicación del evangelio en las Indias. (1577) In: Obras del padre José de Acosta, pp. 387-608. madrid: Atlas (BAE, t.73), 1954.
[7] DUVIOLS, op. cit., p.LXXIII.
[8] WACHTEL, Nathan. A aculturação. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. (Dir.) História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p.113-129.
[9] DUVIOLS, P. op. cit., p. LXXVI.
[10] GRUZINSKI, sege. Las repercusiones de la conquista: la experiencia novohispana. In: BERNAND, Carmen (Org.). Descubrimiento, conquista y colonización de América a quinientos años. México, FCE, 1994.
[11] PACHACUTI YAMQUI SALCAMAYGUA, Joan de Santa Cruz. Relacion de antiguedades deste reyno del Piru; Estudio etnohistórico y lingüístico de Pierre Duviols y César Itier. Cusco:IFEA/CBC, 1993. p.188.
[12] SILVERBLATT, Irene. Luna, sol y brujas; género y clases en los Andes prehispánicos y coloniales. Cusco: centro de estudios regionales andinos “bartolomé de las casas”, 1990. p.129.
[13] TODOROV, T. A conquista da América; a questão do outro. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
[14] NOBOA, Bernardo de. “Causa de ydolatrias hecha a pedimiento del fiscal eclesiastico contra los yndios e yndias hechiseros dogmatizadores confesores sacristanes ministros de ydolos del pueblo de San Juan de Machaca”. In: DUVIOLS, Pierre. Cultura andina y represion; procesos y visitas de idolatrías y hechicerías. Cajatambo, siglo XVII. Cusco:  Centro de Estudios Rurales Andinos “Bartolomé de las Casas”, 1986.
[15] WACHTEL, Nathan. Los vencidos; los indios del Perú frente a la conquista española (1530-1570). Madrid: Alianza Editorial, 1976. p.135.
[16] In: MILLONES, Luís et al. El retorno de las huacas; estudios y documentos del siglo XVI. Lima: IEP/SPP, 1990.  p.259, 278 etc.
[17] ARRIAGA, P. José de. Extirpación de la idolatría del Pirú. In: BARBA, Francisco Esteve. Cronicas peruanas de interes indigena. Madrid: Atlas (BAE, t.109), 1968. p. 208.
[18]Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugares solitários, no campo ou na montanha. Às vezes, chegavam voando, depois de ter untado o corpo com ungüentos, montando bastões ou cabos de vassoura; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou então transformados eles próprios em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam renunciar à fé cristã, profanar os sacramentos e render homenagem ao diabo, presente sob a forma humana ou (mais freqüentemente) como animal ou semi-animal. Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes de voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam ungüentos maléficos, produzidos com gurdura de criança e outros ingredientes” In: GINZBURG, Carlo. História noturna; decifrando o sabá.  São Paulo: Companhia da Letras, 1991. p. 9.
[19] DUVIOLS,  op. cit., p. LXXV.

OBS: Artigo publicado nos Anais do Encontro Regional da ANPUH-RJ de 1998. http://www.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=307
Os desenhos do cronista Guaman Poma de Ayala encontram-se na Biblioteca Real da Dinamarca.
Fotos de acervo próprio.

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