segunda-feira, 8 de agosto de 2011

RESISTÊNCIA E ADAPTAÇÃO INCAICA NAS CRÔNICAS DAS ÍNDIAS


Os diversos documentos que tratam do processo de descobrimento, exploração, conquista e colonização do Novo Mundo são conhecidos pela denominação de Crônicas das Índias e existem três tipos de texto: cartas relatórios, relações geográficas e crônicas[1].

Novo Mundo, 1596 - Theodore de Bry


As crônicas possuem uma dimensão literária e também ideológica e são reflexo do pensamento renascentista, mesclado a traços medievais em que os cronistas tentam assimilar mentalmente a realidade do Novo Mundo[2]. As expedições marítimas, que foram em sua grande maioria, financiadas pelo setor privado, foram responsáveis também pela produção de milhares de documentos. Grande parte das crônicas foi gerada como uma obrigação, visto que o capitão da expedição tinha que descrever para o rei suas atividades e como eram as novas terras descobertas.
Havia outros motivos para a preparação desse tipo de documentação. Poderiam ser gerados documentos pela vontade própria de entender e dar a conhecer esse Novo Mundo, bem como, com o intuito de mudar a situação pessoal, se defendendo de algum processo judicial ou mostrando seus feitos na esperança de conseguir méritos da coroa[3].
Dentre esses documentos, havia aqueles de ordem etnográfica, que foram produzidos por cronistas que dominavam uma ou várias línguas indígenas, como por exemplo, Toríbio Motolínia[4], Bernardino de Sahagún[5], Diego de Landa[6], Cristóbal de Molina, el cuzqueño[7], Juan de Betanzos[8] e outros. Estes foram os fundadores da etnografia e entenderam a dupla tragédia, militar e cultural vivida pelos indígenas e os ajudaram com seus escritos a preservar a memória autóctone.

Imagem de Theodore de Bry para a obra de Las Casas

Quando mencionamos a invenção da América, esta representou a necessidade de forjar uma nova realidade social e cultural nesse Novo Mundo, mundo, não continente nem terra. A América aparecia como o lugar onde tudo podia ser modificado em oposição ao velho mundo. Isso originou idéias como as propagadas na obra Utopia de Thomas More[9], que é um exemplo do pensamento humanista. A Utopia era o local onde imperava o espírito de justiça social, a tolerância religiosa, a educação racional e não violenta, o cultivo das virtudes cidadãs e instituições democráticas e o repúdio à violência e às guerras.
Apesar da influência do humanismo nessa época, poucos eram os cronistas das Índias que sabiam latim, algo essencial a um verdadeiro humanista. Suas preocupações eram de ordem material e de sobrevivência e raros foram os que mostraram em seus escritos ecos utópicos.
Algo sempre presente nas crônicas e que reflete a tentativa de compreensão do outro, é o processo de alteridade. Todorov, pesquisador búlgaro, procura mostrar em sua obra que os espanhóis descobriram, conquistaram e depois procuraram conhecer para poder dominar. Cortez foi um dos que mais buscou informações sobre o povo que ele almejava subjugar política e economicamente. Já Las Casas tratou de compreender os povos indígenas para poder assimilá-los culturalmente[10].
Os cronistas possuíam diversos fins, mas todos descreveram e propagaram dados sobre o Novo Mundo, numa tentativa de integração intelectual desse mundo à mentalidade ocidental. Poucos realmente são os que chegam a entender o mundo indígena, pois para tal, era necessário conhecer a língua desses povos.
A maioria dos cronistas eram homens de poucas letras, havendo inclusive, grandes conquistadores que eram analfabetos, como é o caso de Francisco Pizarro e Diego de Almagro. No entanto, os cronistas liam muito ou pelo menos aquilo a que tinham acesso na América e tentavam fazer o melhor que podiam em suas obras. Apesar de terem motivos variados para realizar suas obras, todos tinham consciência que a historiografia requeria retórica[11], ou seja, que os livros de história deveriam ser redigidos em linguagem culta, elegante e respeitar a verdade dos fatos.
As Crônicas das Índias são um testemunho vivo do encontro/desencontro da cultura européia, neste caso, a espanhola, com as culturas indígenas que habitavam o Novo Mundo. Quando nos referimos ao encontro desses mundos diferentes e que mudaram o curso de suas histórias devido a essa aproximação cultural, não podemos deixar de mencionar os resultados desse cruzamento cultural ocorrido no início do século XVI. No caso andino, por exemplo, percebemos que além da queda e desestruturação do Império dos Incas, a conquista espanhola significou o despojo de seus meios de produção e a impossibilidade de voltar a organizá-los ao seu modo. Significou também a desarticulação das estruturas e o sincretismo, visto que esses povos eram muito religiosos e viam no aparato eclesiástico europeu grande similitude com o deles próprios.


Imagens da conquista dos Incas pelos espanhóis na crônica de Guaman Poma de Ayala

Os espanhóis ao descreverem o mundo andino, tinham uma visão etnocêntrica, pois tinham valores e juízos pré-estabelecidos, dessa forma era difícil captar o caráter social das instituições andinas. O povo andino, por sua vez, passa a integrar-se ao mecanismo da aculturação, entendido aqui como um processo de adaptações e resistência.
Segundo os historiadores Clarke Simon e Nicholas Cooper que estudaram áreas conquistadas pelos romanos, o processo vivido pelos grupos autóctones foi de continuidade do que havia sido desenvolvido no período pré-romano e quando da chegada dos romanos houve a adoção e adaptação de seus traços culturais dentro da cultura nativa[12]. O mesmo aconteceu em relação aos grupos étnicos andinos, que viveram um processo de interação recíproca com os europeus.
Quando examinamos contatos entre culturas diferentes, percebemos que o mais usual é que ocorra uma fusão cultural em que é freqüente o predomínio de uma cultura sobre a outra, depois de um processo sempre complicado em que a recepção de elementos culturais implica seleção de uns, o repúdio a outros e ainda a modificação dos demais. O resultado é uma mescla sempre complexa e às vezes difícil de interpretar. Ocorrem também fenômenos de resistência, que podem ser de cunho seletivo em relação a determinados elementos culturais ou de resistência total[13]. O que podemos perceber é que se faz necessário entender de que modo os grupos étnicos andinos modificaram seus valores e tradições frente aos ocidentais. Através da análise das crônicas podemos interpretar as transformações ocorridas durante o período colonial desde a conquista do Tahuantinsuyu (nome do Império Inca em quechua).
Esses textos são resultantes do processo de alteridade vivido entre culturas distintas e por isso, representam as práticas culturais do século XVI em que grupos étnicos andinos foram forçados a alterar seu modo de vida diante do novo, o que não significa que se submeteram aos espanhóis. Quando mencionamos que os cronistas indígenas possuíam um discurso aculturado, temos em mente a representação discursiva de seu mundo de acordo com suas necessidades de sobrevivência[14]. Prova disso, são as crônicas de Titu Cusi, Guaman Poma de Ayala e Garcilaso de la Vega que  alertam para os danos causados pelos conquistadores espanhóis manipulando o discurso de modo a alcançar seus interesses, que podiam ser pessoais ou coletivos. A colaboração com os europeus, por vezes, significou uma forma de resistência sem o uso da violência.
Conforme Serge Gruzinski demonstrou, as mudanças culturais ocorridas nesse período propiciaram possibilidades de reorganização dos grupos indígenas diante do vazio provocado pelo sistema colonial[15].
Percebemos então, que no caso andino, não houve a passagem da cultura indígena à cultura ocidental, e sim, o processo inverso, em que a cultura indígena integrou os elementos europeus. Como os incas estavam acostumados a produzir excedente econômico e a pagar tributo, os espanhóis aproveitaram o sistema preexistente para controlar a mão-de-obra. Para isso, contavam com a ajuda de chefes locais, que mantinham como antes, a ligação entre senhores e súditos. Foi essa administração indireta que favoreceu a manutenção das tradições indígenas, apesar da ação espanhola em sentido contrário através da evangelização e das reduções[16], que em verdade desde o momento inicial da conquista, eram um instrumento para justificar suas pretensões políticas[17]. Os documentos indígenas são resultantes dessa mescla, em que por um lado há a influência dessa ‘aculturação’, pois os cronistas retratam sua cultura com visão ocidentalizada, mas por outro, fazem uma apologia ao mundo andino[18].
Tais relatos originam-se da confluência de discursos representativos de culturas distintas. A utensilagem mental[19] do espanhol, só lhe permitia reproduzir aquilo que via de acordo com seus próprios traços culturais. O indígena que passou pelo processo de aculturação, não apagou de sua memória a própria cultura, apenas passou a filtrá-la sob influência dos modelos europeus. Ao analisarmos documentos do século XVI e XVII, que tratam a história andina no período incaico e colonial até à época de Toledo, estamos lidando com um conjunto de informações que são a representação desse mundo indígena, aos olhos de europeus e de mestiços e autóctones influenciados por traços culturais espanhóis. Os textos resultantes dessa confluência cultural representam uma nova realidade, que acabará por ser assimilada e sociabilizada.
Podemos concluir, que as crônicas espanholas e indígenas resultam dessas práticas culturais vividas no século XVI, que expressam distintos processos adaptativos e até de resistência. A tão aclamada vitória espanhola sobre os Incas, reflete a tragédia vivida por esse povo, que teve seu mundo transformado. As crônicas fornecem-nos representações da história do descobrimento e conquista do Peru, bem como, todo o período de colonização. Estas refletem discursos distintos de grupos que se encontraram numa fronteira intercultural[20], que permite sua transposição, mas em que estes dificilmente perdem suas próprias características. O processo de alteridade, bem como, as representações do mundo indígena se originam nessas fronteiras discursivas, onde o discurso espanhol e autóctone se encontram ou divergem, mostrando as imagens desses dois mundos em contato.


[1] MIGNOLO, Walter. Cartas, crónicas y relaciones del descubirmiento y la conquista. In: MADRIGAL, L. Íñigo (Coord.). Historia de la literatura hispanoamericana. Madrid: Cátedra, 1982, pp.57-116.
[2] Ver ELLIOTT, J. H. . El viejo mundo y el nuevo. Madrid: Alianza Editorial, 1984.
[3] Como exemplo, podemos citar Diego de Landa, que sofreu um processo judicial na Espanha, em virtude das arbitrariedades praticadas contra os índios e espanhóis em Yucatán. Para tal, redige a Relación de las cosas de Yucatán. México: Porrúa, 1966.
[4] MOTOLINIA, Toribio. Historia de los indios de Nueva España. Barcelona: Juan Gili, 1914.
[5] SAHAGÚN, Berbardino de. Historia general de las cosas de Nueva España. México: Porrúa, 1985.
[6] LANDA, Op. cit., 1966.
[7] CRISTÓBAL DE MOLINA, El cuzqueño. Fábulas y ritos de los Incas. Buenos Aires: Editorial Futuro, 1959[1552].
[8] BETANZOS, Juan de. Suma y narración de los Incas. In: Crónicas peruanas de interés indigena. Madrid: BAE, 1968[1551].
[9] MORE, Thomas. Utopia. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d.
[10] TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
[11] VALCÁRCEL MARTÍNEZ, Simón. Las crónicas de Indias como expresión y configuración de la mentalidad renacentista. Granada: Diputación Provincial de Granada, 1997. p.429.
[12] SIMON, Clarke. Acculturation and continuity: re-assessing the significance of Romanization in the hinterlands of Gloucester and Cirencester. In: WEBSTER, Jane, COOPER, Nick. Roman Imperialism: post-colonial perspectives. University of Leicester: Leicester, 1996, p.83; COOPER, Nicholas F. Searching for the blank generation: consumer choice in Roman and post-Roman Britain. Idem, 1996, p.86.
[13] CÉSPEDES DEL CASTILLO, Guillermo.  Las fronteras de Europa en la Edad Moderna. In: CÉSPEDES DEL CASTILLO, Guillermo. Ensayos sobre los reinos castellanos de Indias. Madrid: RAH, 1999, pp.10 e 11.
[14] STERN, Steven, Resistance, rebellion and consciounes in the Andean Peasant Word, 18th to 20th Centuries. Tha University of Wisconsin Press,.1987.
[15] GRUZINSKI, Serge. La red agujerada – identidades étnicas y occidentalizacion en el Mexico colonial (siglos XVI-XIX). America Indigena, Mexico, ano XLVI, n.3, jul-set, Vol. XLVI, 1986, pp.415.
[16]  WACHTEL, Nathan. A aculturação, in LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976b, pp.114-115.
[17] PIETSCHMANN, Horst. La Conquista de América: un bosquejo histórico, in KOHUT, Karl (ed.), De conquistadores y conquistados; realidad, justificación, representación. Frankfurt, Vervuert, 1992, pag.16.
[18] Sobre encontros e desencontros culturais ver também: BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp.255-267.
[19]  FEBVRE, Lucien. Le problème de l’incroyance au 16e siècle; la religion de Rabelais. Paris, Albin Michel, 1988, pag.328.
[20] “La interculturalidad no apunta pues a la incorporación del otro en lo proprio, sea ya en sentido religioso, moral o estético. Busca más bien la transfiguración de lo proprio y de lo ajeno com base en la interacción  y en vistas a la creación de un  espacio común  compartido determinado por la con-vivencia.
La meta de la con-vivencia no debe confundirse en ningún caso com la “pacificación” de las (conflictivas) controversias entre las diferencias, mediante la reunión de las mismas en una totalidad superior que se las apropria y armoniza”  FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la Filosofía. Bilbao: Desclée, 2001, p.47.

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