Sabemos que grupos indígenas tratavam as doenças através de práticas
mágico-religiosas aliadas ao uso de plantas medicinais e outros produtos. No
caso das doenças mentais não foi distinto e nesta pesquisa procuramos
vislumbrar nos documentos produzidos no período colonial do vice-reinado do
Peru e do Brasil, que doenças mentais os Incas e os Guaranis conheciam e de que
maneira as tratavam. O século XVII é importante para essa análise comparativa,
pois os jesuítas receberam autorização do Papa Gregório XIII para praticar a
medicina em 1576, exercendo-a em hospitais, comunidades e também nas reduções.
As campanhas de Extirpação de Idolatrias no Peru começam nesse período e, entre
outras coisas, perseguem aqueles que praticam a medicina-mágica, que é a
mistura do uso de plantas medicinais e o ritual no processo curativo. Como o
conhecimento jesuítico em relação a essas enfermidades e o processo de cura era
distinto do indígena, neste estudo poderemos perceber também essas diferenças.
Utilizando os documentos produzidos por jesuítas, as crônicas e ainda os
processos de Extirpação de Idolatrias nos aproximaremos a essas práticas
culturais que foram compartilhadas por indígenas e europeus no século XVII.
O uso de fontes do século XVI, XVII e XVIII nos proporcionam dados sobre
como guaranis e incas trataram indivíduos com transtornos mentais, sendo que
isso não significa que no período colonial tais enfermidades tenham recebido o
mesmo diagnóstico e tratamento, visto que com a inserção das doenças européias
em território americano e também a diferença existente entre a medicina
praticada na Europa e aqui entre a população indígena, prevaleceu a preocupação
em tratar as doenças conhecidas pelos europeus. O século XVII é o período áureo
das reduções jesuítico-guaranis em território de colonização espanhola e
portuguesa e também das campanhas de Extirpação de Idolatrias na região andina,
o que nos permite vislumbrar na documentação, relativa ao período, maiores informações
sobre as enfermidades indígenas e seus métodos terapêuticos.
A sociedade colonial, geralmente, associava as doenças mentais a
distúrbios relacionados à ação do demônio ou a questões místicas e, portanto,
eram desordens que deveriam ser combatidas. Para tal, usou-se inclusive dos
tribunais de Inquisição e de Idolatrias, no caso da América espanhola, para
julgar pessoas ditas alucinadas. Homens e mulheres que acreditavam ter dons
especiais e que falavam com seres sobrenaturais foram alguns dos sentenciados a
castigos severos.
No caso específico da cidade de Lima, sabe-se que os hospitais para
espanhóis e indígenas, por exemplo, o hospital de San Andrés e o Santa Ana,
tinham uma ala destinada aos considerados loucos, que deveriam ser separados da
sociedade, bem como, os mendigos, miseráveis e os despejados. Nestes lugares,
eram utilizados procedimentos de repressão, como asfixia por imersão,
confinamentos longos, fome, castigos corporais e até sangrias que colocavam
suas vidas em perigo, entre outros (BUSTÍOS ROMANÍ, 2009, pp.100-101).
Nos séculos XVI e XVII, a medicina espanhola estava estreitamente ligada
à religião, sendo a maior parte dos médicos religiosos e a motivação para
fundar hospitais estava relacionada à necessidade de fazer a caridade como
maneira de espiar os pecados, conforme as crenças cristãs vigentes. Isso
explica em parte, o desinteresse dos espanhóis em descrever as práticas
indígenas, consideradas absurdas e manipulações demoníacas. No entanto, apesar
do aparente desinteresse, os indígenas foram convocados para acompanhar os
conquistadores espanhóis em batalhas, exatamente para usarem seus “modestos
conhecimentos” na cura das feridas dos soldados.
Percebe-se com este estudo que no período colonial, especialmente no
século XVII, sacerdotes europeus e curandeiros indígenas disputaram o domínio
do processo de curas, sendo as práticas-mágicas, destes últimos, questionadas
tanto nas reduções jesuítico-guaranis como pelos extirpadores de idolatrias no
Vice-Reinado do Peru. Já o uso das ervas na terapêutica indígena não foi
colocado em questão e acabou sendo apropriado pelos espanhóis, que se
preocuparam em conhecer cada vez mais as suas propriedades, elaborando
importantes tratados de herbolária e sua aplicação na medicina.
Entre os que contribuíram para
a realização de estudos sobre as práticas curativas indígenas no vice-reinado
do Peru, podemos destacar Nicolás Monardes (1569-1574), Bernabé Cobo (1653),
Guaman Poma de Ayala (1615), Pedro Cieza de León (1553), Garcilaso de la Vega
(1609), José de Acosta entre outros. Essas obras causaram importantes mudanças
no uso de medicamentos, até então conhecidos por europeus, devido à descoberta
de novas plantas e aos métodos de preparação indígena, que eram bastante
adiantados em comparação à medicina ibérica.
No caso das reduções jesuítico-guaranis,
as obras de Antonio Ruiz de Montoya, Antonio Sepp e as Cartas Ânuas da
Provincia do Paraguay, entre outros documentos, fornecem dados sobre as práticas
terapêuticas dos Guarani e as doenças por eles conhecidas. A chegada dos
europeus ocasionou o aumento do número de doenças, obrigando os Guarani a
reformularem suas atitudes diante da doença e da morte, o que segundo Eliane
Fleck pode ser observado nos dicionários organizados por Montoya, que entre
outros termos, destacam-se expressões relativas às epidemias e às reações dos
Guarani frente aos resultados danosos de tais doenças (2005, p.76).
Para os grupos indígenas aqui estudados, Incas e Guarani, a doença possui
características mágicas, sendo considerada resultado da ação de forças
sobrenaturais e por isso, o tratamento necessariamente passava pela combinação
de religião, ritual e prática curativa levadas a cabo pelos líderes espirituais
desses povos. Os xamãs, mescla de sacerdote com médico e feiticeiro, eram os responsáveis
por diagnosticar as enfermidades e usar de seu conhecimento herbolário para
tratar os pacientes. No caso das enfermidades mentais, os cronistas nos
fornecem menos informação até mesmo pelo número limitado de vocábulos que utilizaram
para tratar esse tema. Os termos mais utilizados eram: ansiedade e aflição;
medo patológico; loucura; melancolia e histeria.
No século XVI, grande parte dos europeus já sabia que as enfermidades
mentais não resultavam da ação do demônio e por isso, os cronistas procuraram
descrevê-las como doenças de certo modo comuns. Aqueles que conviveram com
Incas e Guarani ficaram surpresos com seu amplo conhecimento de processos de
cura através do uso de ervas e enumeraram algumas dessas doenças, bem como, que
rituais e plantas eram utilizados na sua cura.
Para os europeus desse período a doença era resultante do desequilíbrio
entre os 4 humores (teoria hipocrática), o sangue (presteza), a fleuma (frieza,
racionalidade), a bílis amarela (raiva) e a bílis negra (melancolia) e seu papel
consistia em usar de práticas que restabelecessem o equilíbrio. Tais práticas
consistiam basicamente em sangrias, purgas, uso de poções e até mesmo, de
rezas, relíquias e tantas outras terapêuticas consideradas mágicas, que podemos
afirmar que a prática curativa dos religiosos se equiparou à dos xamãs. No
entanto, estes foram acusados de feitiçaria e suas práticas repudiadas,
enquanto as práticas dos religiosos europeus eram consideradas aceitáveis na
sociedade colonial. Essa disputa entre religiosos europeus e curandeiros
indígenas aparece nos documentos de extirpação de idolatrias, em algumas
crônicas e também nas Cartas Ânuas. O conhecimento herbolário indígena foi
adaptado pelos jesuítas e houve uma mescla de todo esse conhecimento,
originando uma medicina avançada nas reduções jesuíticas guarani e também na
região andina, em que parte da população era de origem inca.
A documentação que utilizamos em nosso estudo condena os rituais
indígenas de cura, principalmente por destacar o caráter demoníaco dessas
práticas. Para tratar uma doença, os índios conciliavam religião, magia e
experiência prática. No caso específico das doenças mentais, os grupos aqui
analisados conheciam diversos tipos e para cada um usavam determinadas plantas
e rezas. Os dicionários e outros documentos produzidos por espanhóis e
portugueses da colônia nos ajudam a uma aproximação ao tema, indicando alguns
vocábulos referentes às doenças mentais, que nem sempre encontram
correspondência em português. Nas traduções do guarani e do quechua para o espanhol ou português aparecem termos
como “delírio, loucura, possessão maligna, aflição, temor, demência,
melancolia, tristeza, insanidade”, entre muitas outras. Nas crônicas e também nos
processos de idolatria são abordados distúrbios mentais e como os xamãs os
sanavam.
Encontramos nessa documentação colonial a relação de plantas utilizadas
no tratamento de algumas desordens mentais, que podiam ser utilizadas em forma
de colares ou para preparar bebidas a serem ingeridas pelo paciente. O tratamento
consistia numa mistura de métodos mágicos e empíricos com uso de diversos
vegetais, frutos, sementes e minerais, sendo que não é possível perceber pela
documentação analisada, se havia também o uso de algum tipo de terapia. Como
para a população indígena as doenças eram conseqüência de uma alteração nas
relações com forças sobrenaturais, o tratamento passava necessariamente pela
combinação de rituais mágico-religiosos e a ingestão de plantas medicinais,
sendo que os atos ditos “mágicos” foram demonizados pelos espanhóis como já
vimos.
O contato com documentação sobre curandeiros, métodos de cura, ervas
medicinais, sobre a medicina espanhola e portuguesa, fundação de enfermarias e
hospitais no período colonial e outros, nos permitiu usar a documentação para
analisar a concepção de doença tida pelos indígenas, que se distinguia da visão
espanhola principalmente por seu vínculo aos deuses e por isso, a necessidade
de rituais. Procuramos entender por que a população indígena optava pela medicina tradicional ou mágica em dados
momentos e em outros recorria aos hospitais fundados pelos europeus. Sabemos
que os religiosos tinham por obrigação cuidar da saúde da população indígena,
bem como, evangelizá-los, extirpar suas idolatrias e prepará-los para a nova estrutura
colonial. Para tanto, desde o começo da colonização foram criados diversos
serviços assistenciais para atender às necesidades mais prementes, visto que
várias doenças oriundas do Velho Mundo afetaram a população nativa. Houve
grandes problemas sanitários, devido à falta de resistência das populações
locais à ação desses germes até então inexistentes nessa região. Isso causou
uma catástrofe demográfica, levando à criação de diversos hospitais destinados
ao cuidado dessa população. Desde 1533, são fundadas enfermarias e hospitais em
distintos locais, mostrando também a existência de um intercâmbio científico,
em que os espanhóis passaram a observar e utilizar métodos curativos da
população indígena.
No caso específico das
enfermedades mentais não foi distinto e o que pudemos perceber é que os
documentos tratam de varias doenças e tratamentos que não necessariamente eram
conhecidos pelos europeus.
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