domingo, 19 de agosto de 2012

DOENÇAS MENTAIS ENTRE OS INCAS E GUARANIS NO SÉCULO XVII




Sabemos que grupos indígenas tratavam as doenças através de práticas mágico-religiosas aliadas ao uso de plantas medicinais e outros produtos. No caso das doenças mentais não foi distinto e nesta pesquisa procuramos vislumbrar nos documentos produzidos no período colonial do vice-reinado do Peru e do Brasil, que doenças mentais os Incas e os Guaranis conheciam e de que maneira as tratavam. O século XVII é importante para essa análise comparativa, pois os jesuítas receberam autorização do Papa Gregório XIII para praticar a medicina em 1576, exercendo-a em hospitais, comunidades e também nas reduções. As campanhas de Extirpação de Idolatrias no Peru começam nesse período e, entre outras coisas, perseguem aqueles que praticam a medicina-mágica, que é a mistura do uso de plantas medicinais e o ritual no processo curativo. Como o conhecimento jesuítico em relação a essas enfermidades e o processo de cura era distinto do indígena, neste estudo poderemos perceber também essas diferenças. Utilizando os documentos produzidos por jesuítas, as crônicas e ainda os processos de Extirpação de Idolatrias nos aproximaremos a essas práticas culturais que foram compartilhadas por indígenas e europeus no século XVII.
O uso de fontes do século XVI, XVII e XVIII nos proporcionam dados sobre como guaranis e incas trataram indivíduos com transtornos mentais, sendo que isso não significa que no período colonial tais enfermidades tenham recebido o mesmo diagnóstico e tratamento, visto que com a inserção das doenças européias em território americano e também a diferença existente entre a medicina praticada na Europa e aqui entre a população indígena, prevaleceu a preocupação em tratar as doenças conhecidas pelos europeus. O século XVII é o período áureo das reduções jesuítico-guaranis em território de colonização espanhola e portuguesa e também das campanhas de Extirpação de Idolatrias na região andina, o que nos permite vislumbrar na documentação, relativa ao período, maiores informações sobre as enfermidades indígenas e seus métodos terapêuticos.
A sociedade colonial, geralmente, associava as doenças mentais a distúrbios relacionados à ação do demônio ou a questões místicas e, portanto, eram desordens que deveriam ser combatidas. Para tal, usou-se inclusive dos tribunais de Inquisição e de Idolatrias, no caso da América espanhola, para julgar pessoas ditas alucinadas. Homens e mulheres que acreditavam ter dons especiais e que falavam com seres sobrenaturais foram alguns dos sentenciados a castigos severos.
No caso específico da cidade de Lima, sabe-se que os hospitais para espanhóis e indígenas, por exemplo, o hospital de San Andrés e o Santa Ana, tinham uma ala destinada aos considerados loucos, que deveriam ser separados da sociedade, bem como, os mendigos, miseráveis e os despejados. Nestes lugares, eram utilizados procedimentos de repressão, como asfixia por imersão, confinamentos longos, fome, castigos corporais e até sangrias que colocavam suas vidas em perigo, entre outros (BUSTÍOS ROMANÍ, 2009, pp.100-101).
Nos séculos XVI e XVII, a medicina espanhola estava estreitamente ligada à religião, sendo a maior parte dos médicos religiosos e a motivação para fundar hospitais estava relacionada à necessidade de fazer a caridade como maneira de espiar os pecados, conforme as crenças cristãs vigentes. Isso explica em parte, o desinteresse dos espanhóis em descrever as práticas indígenas, consideradas absurdas e manipulações demoníacas. No entanto, apesar do aparente desinteresse, os indígenas foram convocados para acompanhar os conquistadores espanhóis em batalhas, exatamente para usarem seus “modestos conhecimentos” na cura das feridas dos soldados.
Percebe-se com este estudo que no período colonial, especialmente no século XVII, sacerdotes europeus e curandeiros indígenas disputaram o domínio do processo de curas, sendo as práticas-mágicas, destes últimos, questionadas tanto nas reduções jesuítico-guaranis como pelos extirpadores de idolatrias no Vice-Reinado do Peru. Já o uso das ervas na terapêutica indígena não foi colocado em questão e acabou sendo apropriado pelos espanhóis, que se preocuparam em conhecer cada vez mais as suas propriedades, elaborando importantes tratados de herbolária e sua aplicação na medicina.
Entre os que contribuíram para a realização de estudos sobre as práticas curativas indígenas no vice-reinado do Peru, podemos destacar Nicolás Monardes (1569-1574), Bernabé Cobo (1653), Guaman Poma de Ayala (1615), Pedro Cieza de León (1553), Garcilaso de la Vega (1609), José de Acosta entre outros. Essas obras causaram importantes mudanças no uso de medicamentos, até então conhecidos por europeus, devido à descoberta de novas plantas e aos métodos de preparação indígena, que eram bastante adiantados em comparação à medicina ibérica.
No caso das reduções jesuítico-guaranis, as obras de Antonio Ruiz de Montoya, Antonio Sepp e as Cartas Ânuas da Provincia do Paraguay, entre outros documentos, fornecem dados sobre as práticas terapêuticas dos Guarani e as doenças por eles conhecidas. A chegada dos europeus ocasionou o aumento do número de doenças, obrigando os Guarani a reformularem suas atitudes diante da doença e da morte, o que segundo Eliane Fleck pode ser observado nos dicionários organizados por Montoya, que entre outros termos, destacam-se expressões relativas às epidemias e às reações dos Guarani frente aos resultados danosos de tais doenças (2005, p.76).
Para os grupos indígenas aqui estudados, Incas e Guarani, a doença possui características mágicas, sendo considerada resultado da ação de forças sobrenaturais e por isso, o tratamento necessariamente passava pela combinação de religião, ritual e prática curativa levadas a cabo pelos líderes espirituais desses povos. Os xamãs, mescla de sacerdote com médico e feiticeiro, eram os responsáveis por diagnosticar as enfermidades e usar de seu conhecimento herbolário para tratar os pacientes. No caso das enfermidades mentais, os cronistas nos fornecem menos informação até mesmo pelo número limitado de vocábulos que utilizaram para tratar esse tema. Os termos mais utilizados eram: ansiedade e aflição; medo patológico; loucura; melancolia e histeria.
No século XVI, grande parte dos europeus já sabia que as enfermidades mentais não resultavam da ação do demônio e por isso, os cronistas procuraram descrevê-las como doenças de certo modo comuns. Aqueles que conviveram com Incas e Guarani ficaram surpresos com seu amplo conhecimento de processos de cura através do uso de ervas e enumeraram algumas dessas doenças, bem como, que rituais e plantas eram utilizados na sua cura.


Para os europeus desse período a doença era resultante do desequilíbrio entre os 4 humores (teoria hipocrática), o sangue (presteza), a fleuma (frieza, racionalidade), a bílis amarela (raiva) e a bílis negra (melancolia) e seu papel consistia em usar de práticas que restabelecessem o equilíbrio. Tais práticas consistiam basicamente em sangrias, purgas, uso de poções e até mesmo, de rezas, relíquias e tantas outras terapêuticas consideradas mágicas, que podemos afirmar que a prática curativa dos religiosos se equiparou à dos xamãs. No entanto, estes foram acusados de feitiçaria e suas práticas repudiadas, enquanto as práticas dos religiosos europeus eram consideradas aceitáveis na sociedade colonial. Essa disputa entre religiosos europeus e curandeiros indígenas aparece nos documentos de extirpação de idolatrias, em algumas crônicas e também nas Cartas Ânuas. O conhecimento herbolário indígena foi adaptado pelos jesuítas e houve uma mescla de todo esse conhecimento, originando uma medicina avançada nas reduções jesuíticas guarani e também na região andina, em que parte da população era de origem inca.
A documentação que utilizamos em nosso estudo condena os rituais indígenas de cura, principalmente por destacar o caráter demoníaco dessas práticas. Para tratar uma doença, os índios conciliavam religião, magia e experiência prática. No caso específico das doenças mentais, os grupos aqui analisados conheciam diversos tipos e para cada um usavam determinadas plantas e rezas. Os dicionários e outros documentos produzidos por espanhóis e portugueses da colônia nos ajudam a uma aproximação ao tema, indicando alguns vocábulos referentes às doenças mentais, que nem sempre encontram correspondência em português. Nas traduções do guarani e do quechua  para o espanhol ou português aparecem termos como “delírio, loucura, possessão maligna, aflição, temor, demência, melancolia, tristeza, insanidade”, entre muitas outras. Nas crônicas e também nos processos de idolatria são abordados distúrbios mentais e como os xamãs os sanavam.
Encontramos nessa documentação colonial a relação de plantas utilizadas no tratamento de algumas desordens mentais, que podiam ser utilizadas em forma de colares ou para preparar bebidas a serem ingeridas pelo paciente. O tratamento consistia numa mistura de métodos mágicos e empíricos com uso de diversos vegetais, frutos, sementes e minerais, sendo que não é possível perceber pela documentação analisada, se havia também o uso de algum tipo de terapia. Como para a população indígena as doenças eram conseqüência de uma alteração nas relações com forças sobrenaturais, o tratamento passava necessariamente pela combinação de rituais mágico-religiosos e a ingestão de plantas medicinais, sendo que os atos ditos “mágicos” foram demonizados pelos espanhóis como já vimos.
O contato com documentação sobre curandeiros, métodos de cura, ervas medicinais, sobre a medicina espanhola e portuguesa, fundação de enfermarias e hospitais no período colonial e outros, nos permitiu usar a documentação para analisar a concepção de doença tida pelos indígenas, que se distinguia da visão espanhola principalmente por seu vínculo aos deuses e por isso, a necessidade de rituais. Procuramos entender por que a população indígena optava pela medicina tradicional ou mágica em dados momentos e em outros recorria aos hospitais fundados pelos europeus. Sabemos que os religiosos tinham por obrigação cuidar da saúde da população indígena, bem como, evangelizá-los, extirpar suas idolatrias e prepará-los para a nova estrutura colonial. Para tanto, desde o começo da colonização foram criados diversos serviços assistenciais para atender às necesidades mais prementes, visto que várias doenças oriundas do Velho Mundo afetaram a população nativa. Houve grandes problemas sanitários, devido à falta de resistência das populações locais à ação desses germes até então inexistentes nessa região. Isso causou uma catástrofe demográfica, levando à criação de diversos hospitais destinados ao cuidado dessa população. Desde 1533, são fundadas enfermarias e hospitais em distintos locais, mostrando também a existência de um intercâmbio científico, em que os espanhóis passaram a observar e utilizar métodos curativos da população indígena.
No caso específico das enfermedades mentais não foi distinto e o que pudemos perceber é que os documentos tratam de varias doenças e tratamentos que não necessariamente eram conhecidos pelos europeus.



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