Já a partir da metade do século XVI começam a aparecer no Vice-Reinado do
Peru fenômenos de possessão, pacto com o demônio, bruxaria e outras heresias.
Um processo importante e bastante estudado é a causa de Maria Pizarro[1],
uma jovem limense acusada de estar endemoniada e que por muitos anos foi
exorcizada por um grupo de religiosos, dois jesuítas e três dominicanos. A
importância deste processo está relacionada também com o momento em que
ocorreu, visto que várias mudanças reformistas estavam em andamento. Não
podemos esquecer, que o vice-rei Francisco de Toledo havia chegado em 1569 para
dar início a mudanças políticas solicitadas por Felipe II com o objetivo de
impor a autoridade real aos colonos, muitos deles descendentes dos primeiros
conquistadores. No âmbito religioso ocorreram dois fatos marcantes, a chegada
da Companhia de Jesus a Lima em 1568 e a instalação do Tribunal do Santo Ofício
em 1569. Esse conjunto de acontecimentos favorecia a política reformista da
Coroa e também a tarefa evangelizadora[2] e
ao mesmo tempo, propiciou o desenvolvimento de histórias relacionadas com o
sobrenatural, como o que ocorreu com Maria Pizarro.
Dentre os vários casos julgados pela Inquisição limense podemos destacar
o dessa jovem criolla, que em 1571 é
envolvida num longo processo junto com seus confessores, os jesuítas Jerónimo
Ruiz de Portillo e Luis López e os dominicanos Fr. Alonso Gasco, Fr. Pedro de
Toro e Fr. Francisco de la Cruz. Maria
Pizarro dizia ter visões e conversar com seres, que ninguém sabia se eram anjos
ou demônios. Por conta disso, várias pessoas começaram a consultá-la achando
que fosse uma “iluminada”. O grupo de religiosos acima mencionados passou a
revezar-se em sua casa para tentar exorcizá-la e descobrir se ela estava sob o
domínio do bem ou do mal. Porém, alguns se envolveram carnalmente com ela,
cometendo o grave crime da solicitação. Outros acreditaram em suas visões e
vislumbraram a possibilidade de criar-se uma seita, que questionava os dogmas
católicos e também o poder da coroa espanhola. O resultado de tal caso foi o
início do longo processo inquisitorial contra a dita “iluminada” e esse grupo
de religiosos, que passaremos a relatar.
Tudo começou quando o Fr. Alonso Gasco, cheio de remorsos, resolveu se
auto-denunciar ao Tribunal do Santo Ofício em julho de 1571. Em suas
declarações delatou os demais participantes das sessões de exorcismo em torno
de Maria Pizarro[3]. Ele
realmente acreditava que a jovem criolla incorporava
santos e só sob tortura acabou confessando que se enganara. Foi condenado a
auto público, abjuração e desterro. Seu companheiro, o Fr. Pedro de Toro, foi
aprisionado logo depois de sua condenação, exatamente em julho de 1572. Ele
declarou ter expulsado 8 mil demônios do corpo de Maria Pizarro[4] e
por isso, acabou sendo condenado. Fr. Pedro acabou adoecendo, mas recebeu a
absolvição sacramental e por ter morrido antes de assinar a sentença de
reconciliação, foi necessário fazer sair ao auto sua estátua com hábito
penitencial para que sua sentença fosse lida e ele reconciliado. Certos
documentos da época mencionam sua participação em um levantamento contra o
vice-rei Toledo, levando a crer que sua condenação inicial nada tinha a ver com
o exorcismo praticado no caso de Maria Pizarro, e sim, devido aos motivos
políticos em que se envolvera[5].
O caso do Fr. Francisco de la
Cruz foi bem mais grave[6].
Esse dominicano chegou ao Peru acompanhando o Fr. Domingo de Santo Tomás,
visitador e provincial da ordem dominicana no Peru. Tornou-se catedrático em
Teologia na Universidade Mayor de San Marcos[7] e
era homem de confiança do arcebispo de Lima. Mesmo assim, se envolveu no caso
de Maria Pizarro, sendo chamado a depor ante o tribunal em outubro de 1571.
Descreveu Maria Pizarro como uma mulher enamorada carnalmente de um demônio,
mas ao mesmo tempo, contou sobre um menino caído do céu, que seria o libertador
do Peru e, de um anjo, que incorporado na mulher, dizia coisas maravilhosas
sobre o tal menino. Tais afirmações deixaram os membros do tribunal surpresos,
pois não era um discurso condizente ao de um teólogo, ainda mais que ele
admitia acreditar em tais fenômenos sobrenaturais. Acabou sendo preso e acusado
de heresia por ter tido trato com o demônio incorporado em Maria Pizarro , por
cuja boca lhe falava S. Gabriel e outros santos. Fez pacto com o demônio para
aprender magia e para implantar sua seita, disse que nasceria um menino em Lima
que seria santo, frade dominicano e a solução para o Peru[8].
Adorava um anjo, tendo por oráculo o que dizia a endemoniada Maria Pizarro e
diante de tantas acusações foi solicitada a sua condenação. O frei se defendeu
verbalmente e por escrito afirmando que em sua acusação nada comprometia sua fé
católica. Em novembro de 1573 foi acusado novamente de querer criar uma seita
para levantar-se contra o reino e trair o rei, segundo o queixoso vice-rei
Toledo. Foi ainda acusado de defender hereges e feiticeiros e de se
auto-intitular profeta e intérprete iluminado de Deus. Não houve mais defesa
para ele, acabou sendo considerado herege astuto e pertinaz como nenhum outro e
foi sentenciado à fogueira, sendo queimado vivo em 13 de abril de 1578.
Depois dos dominicanos, o Tribunal do Santo Ofício ouviu a jovem criolla e analfabeta Maria Pizarro,
aprisionando-a em dezembro de 1572. Na primeira audiência ela se declarou
donzela de 22 anos e frente às pressões inquisitoriais acabou relatando suas
visões e a dúvida sobre se os seres que lhe apareciam eram santos ou demônios e
sobre os exorcismos que lhe fizeram os religiosos envolvidos no caso. Acabou
por confessar que havia tido tratos com o demônio que lhe aparecia como um
“homem gentil” e havia prometido casar-se com ela. Posteriormente, confessou
que teve trato carnal com o P. Luis López e que o P. Ruiz Portillo também teve
amizade com ela. Posteriormente voltou atrás em seu testemunho, negando sua
relação com o P. López e explicando que só havia dito tais coisas porque estava
chateada com ele e que prosseguia donzela como quando nasceu. Em junho de 1573,
foi acusada de heresia por ter tido “pacto com o demônio”, porém morreu sem ter
assinado a acusação e foi enterrada em segredo. Os inquisidores consultaram a Suprema e
alguns anos depois a causa foi suspensa e os herdeiros comunicados do paradeiro
de seu corpo[9].
Luis López foi o último a ser interrogado, sendo considerado o principal
exorcista no caso de Maria Pizarro. Ele foi um dos fundadores da Companhia de
Jesus no Peru, mesmo assim, o acusaram de crer e divulgar que os “incorporados”
em Maria Pizarro
eram anjos e santos e também por crime de solicitação, visto que se aproveitou
sexualmente da jovem criolla. Ele
também foi acusado de utilizar “palavras graves” contra sua majestade, bispos e
vice-reis, difamar o governo espiritual e temporal e incitar a rebelião
projetada por Fr. Francisco de la Cruz.
Concluído o processo foi condenado a diversas privações e ao
desterro perpétuo. Alguns documentos mostram que ele realmente predicava contra
o vice-rei Toledo, o que demonstra que Toledo também se utilizou da Inquisição
para livrar-se de opositores. Porém, a influência dos jesuítas e do P. José de
Acosta o salvaram de uma pena maior[10].
O P. Ruiz de Portillo não foi processado, não só por ser jesuíta, pois o
Tribunal de Lima tinha recebido do Conselho da Suprema Inquisição de Madri
indicações para agir com cautela em relação à Companhia de Jesus, mas também
pela condição de protegido do vice-rei Toledo, visto ter sido seu mentor
espiritual por um tempo[11].
Este processo, em especial, demonstra que a crença no demônio realmente
já fazia parte do imaginário colonial[12].
Porém, a coroa e a igreja lançaram mão desse mesmo imaginário para resolver
problemas políticos, utilizando o Tribunal do Santo Ofício para colocar ordem
nessa sociedade em
convulsão. Como constatamos, alguns dos religiosos envolvidos
nesse processo predicavam contra a monarquia espanhola e inclusive, como no
caso do Fr. Francisco de la Cruz ,
contestavam os dogmas católicos e proclamavam a destruição da velha cristandade
européia em suas profecias. O Fr. Francisco ainda se intitulou o novo Papa da
Igreja que ressurgiria em Lima e incitou a população local a escolher um novo
monarca para o vice-reino e a levantar-se contra o poder da metrópole. Os
membros da Inquisição e o vice-rei Toledo percebendo os perigos de tais
discursos trataram de aprisionar e condenar esses religiosos, o que reitera a
percepção do caso de Maria Pizarro como motivação para colocar fim ao que
poderia ter sido o início de uma sublevação contra os dogmas da Igreja Católica
e o domínio da monarquia espanhola e seus representantes no vice-reinado do
Peru.
Pachacamac - Deus da costa peruana demonizado pelos espanhóis
b. Práticas mágicas em fontes
inquisitoriais e de idolatrias
Depois de termos analisado o imbricado processo de Maria Pizarro,
passaremos ao exame de fontes inquisitoriais e de idolatrias relacionadas às
práticas mágicas, mais propriamente, a feitiçaria e bruxaria com a participação
demoníaca.
Como os deuses nativos foram convertidos em figuras malignas e no
imaginário de origem hispânica elas sempre habitaram, nesses processos
transparece a junção da visão dos religiosos a respeito da demonologia e
bruxaria e a demonização do imaginário colonial que se formou após a chegada
dos espanhóis ao vice-reinado do Peru.
As relações de causas e processos a que tivemos acesso são bastante
resumidas e não permitem recuperar detalhes sobre os acusados, como sua
proveniência geográfica, visto que nem sempre é mencionada, ou seu status social. Porém, a maioria dos
acusados pela Inquisição e pela Extirpação de praticarem feitiçaria pertencia a
grupos mais pobres.
Os feiticeiros eram aquelas pessoas que dominavam a arte da cura, da
adivinhação, de preparar filtros do amor e também de praticar malefícios. Nos
processos aparecem muitas mulheres ditas “bruxas”, mas em maior número como clientes
desses especialistas em
magia. Tais homens e mulheres pertenciam a diferentes grupos
e a diversidade étnica aparece como uma constante nos processos.
No começo, o Tribunal do Santo Ofício perseguiu massivamente os
feiticeiros de origem espanhola, até mesmo por que os indígenas estavam fora de
sua jurisdição. Pela análise de alguns processos, podemos perceber que essa
divisão não se apresentava tão explícita. Como exemplo, podemos mencionar o
caso de várias mulheres que foram acusadas de praticar feitiçaria em 1598 e
entre elas, havia duas espanholas, Maria Maldonado de Sevilha e Francisca
Ximénez. A primeira defendeu com orgulho seus conhecimentos de rituais e
orações próprios de uma sevilhana[13] e
certamente foi responsável por repassar esses ritos a muitas outras mulheres.
Francisca Ximénez foi uma de suas discípulas e confessou ter prosseguido sua
formação consultando diversas outras mulheres para aprender novos conjuros[14].
Em seu depoimento chega a mencionar que
…avia hablado a çiertas yndias
hechiceras para que le dixesen çiertas cosas que quería saber y se las dixeron,
y no les dio credito[15].
Isso nos faz pensar nos motivos que a levaram a negar sua curiosidade em
relação aos conhecimentos indígenas e também porque os inquisidores não lhe
pediram detalhes, possivelmente pelo fato de que as tais feiticeiras estavam
fora de seu alcance. Na continuação desse processo aparecem outras mulheres,
algumas mestiças, e todas afirmam trocar informações entre elas em quéchua, o que demonstra novamente a
presença do elemento indígena. Sempre se referem a feiticeiras indígenas a quem
consultam, mas o medo de receberem um castigo maior por parte da Inquisição as
faz escamotear a própria história[16].
Esse exemplo demonstra que houve uma circulação de tradições e conhecimentos
entre etnias distintas, mas não comprova ainda a formação de novos ritos
oriundos de uma mescla cultural.
Em 1662, Magdalena Camacho declara que fazia junto com outras mulheres o
“conjuro de la anima sola” para que lhe trouxesse o amante ausente. Depois de
feito o conjuro, rezava alguns credos e
…dezía que los depositaba en las
faldas de nuestra señora da Virgen Maria para ofrecerlos por el ánima sola,
para que saliesse de sus penas en trayendo al hombre a la voluntad de la mujer[17].
Percebe-se através desse processo que paulatinamente foi se formando uma
tradição comum aos membros dos diversos grupos étnicos, ilustrando as
transformações ocorridas com a feitiçaria no início do século XVII. A troca de
conhecimentos entre colegas de diferentes etnias, proporcionou a recomposição
de rituais em que as orações e conjuros que provinham dos modelos espanhóis se
mesclam ao uso da coca, do tabaco e outros objetos que pertenciam à cultura
indígena e africana.
Lima vivia no século XVII um “clima de milagrería” que não favorecia o
desenvolvimento da medicina científica, por isso, a medicina popular detinha
diversos conhecimentos adquiridos nas transferências culturais que se produziam
na vida cotidiana[18].
A Extirpação também reproduziu o ceticismo e a incredulidade que
caracterizou a perseguição aos feiticeiros pela Inquisição na Espanha
metropolitana. Os visitadores descartaram a possibilidade de existência de uma
autêntica presença demoníaca nas atividades dos especialistas religiosos
andinos[19].
Porém, há vários casos em que o acusado não só testifica o pacto diabólico como
confirma ter mantido relações sexuais com o demônio. Um exemplo disso é o caso
de Inês Carva que em 1650 afirmou ter falado várias vezes com o diabo e que o
recebia em seu leito da mesma maneira que receberia seu esposo[20].
Juana Icha, outra acusada, insistiu na sua ligação com o demônio, pois este
havia lhe concedido os ensinamentos sobre curandeirismo e a adivinhação[21].
Esses casos demonstram que muitas vezes os acusados prestavam o testemunho que
correspondia aquilo que os espanhóis tinham como pré-concebido.
O processo de María Ynes, “la de narices cortados”, de 1662 é outro
exemplo de curandeira que foi acusada de ser feiticeira, adivinha e curar com
superstições por possuir pacto com o demônio[22].
Em 1668, a
índia Juana de Mayo, julgada por idolatria, se reunia com uma espanhola, uma
mestiça e uma mulata para fazer seus conjuros, mas ao adoecer foi a uma negra
que ela recorreu[23]. Isso
demonstra que não importava a etnia, pois esses feiticeiros(as) funcionavam
como intermediários entre o mundo dos homens e o universo e a eles todos
procuravam para sanar problemas, curar enfermidades, resolver problemas de
amor, inveja e qualquer outro assunto em que o poder das forças ocultas pudesse
ajudar efetivamente.
Outro processo expressivo é o de Gerónimo de Ortega que foi processado em
1705 e em seus intentos de obter favores do demônio lança mão de todas as
tradições culturais:
Demônio africano, tu que dizen
eres señor del África, como tan poderoso ayúdanos y danos fortuna así para el
juego como para nuestros amores y te convocaremos en adelante y detestaremos el
auxilio de Dios, y puesto de rodillas cogían la yerba coca en las manos y la
lebantaban en alto[24].
Ele usa a magia espanhola, faz pacto com o demônio, utiliza a coca, chicha[25],
milho, aguardente, penas, cabelos humanos, procura bruxas e tudo o que for
necessário para alcançar seus propósitos de receber as benesses do além.
A causa de Lorenza Vilchez[26],
natural do povoado de Guayau da província de Tauyou do Arcebispado de Lima
(mapa em anexo), datada de 1762, é mais um exemplo de como os mestiços
desempenharam importante papel de “intermediários culturais” e consequentemente
acabavam sofrendo a repressão inquisitorial. Lorenza era casada, lavradora e
foi acusada de ter pacto com o demônio. Todas as testemunhas, mestiços, índios
e brancos, afirmaram ser ela adivinha, mas não bruxa, pois conseguia achar
coisas perdidas e descobrir feitiços e desmanchá-los. Tinha mais de 50 anos e
manifestou total ignorância da doutrina cristã e não sabia sequer uma oração.
Quando o fiscal leu sua sentença ela disse não haver cometido heresia e nem
apostasiado. Porém, acabou por confessar que mantinha relações com o demônio,
pois este lhe aparecia sempre como um homem gentil. Como para os inquisidores
as mulheres eram sempre mais propensas ao encanto e à bruxaria, depois de ter
confessado a apostasia e a idolatria formal com pacto expresso com o demônio,
pediram que abjurasse e a reconciliaram, porém condenaram-na à prisão perpétua.
Seu processo demonstra que na sociedade colonial do século XVIII persistiram as
crenças nas práticas mágicas, inclusive com a participação do demônio, como uma
forma de oposição aos costumes católicos. A troca de saberes, entre as
diferentes culturas, se fez presente nos três séculos do período colonial,
propiciando o bom funcionamento dessa sociedade.
Nos exemplos apresentados encontramos alguns dos ‘intermediários
culturais” responsáveis por interceder junto às forças ocultas na resolução de
problemas terrenos e que compartilhavam dos mesmos saberes e discursos.
Diferente do processo de Maria Pizarro, que também tinha uma motivação política
pautada nos conflitos entre as ordens religiosas, os processos acima
mencionados estavam atrelados ao imaginário do período colonial, em que a
população era extremamente crédula em relação ao sobrenatural e aderia à
cumplicidade contra as forças malignas para alcançar seus objetivos e escapar
aos dilemas do cotidiano. De certo modo, essas práticas ajudaram a manter a
união entre as diversas culturas e a superar alguns dos problemas sociais que
afetavam a população do Arcebispado de Lima no período colonial.
Muitas foram as causas para a perseguição de bruxos e bruxas no
Arcebispado de Lima no período colonial. Entre elas, temos o fato de que a
sociedade via os feiticeiros como aqueles que conseguiam através de suas
técnicas ocultas remediar situações que escapavam ao controle das pessoas
comuns. Os feiticeiros cientes de seu poder exploravam essa situação a seu favor.
A forma encontrada para combater esse poder foi através da Inquisição e dos
tribunais ordinários com o resgate das artes maléficas associadas ao pacto
diabólico, insuflado pelo espírito da Contra-Reforma. Era necessário minimizar
essa transgressão aos cânones da ortodoxia, que também simbolizava perigo à
solidez do Estado. Podemos afirmar que essa foi uma solução para algumas
tensões existentes na sociedade, usando para isso o imaginário coletivo de medo
do diabo e dos bruxos para, entre outras coisas, desviar a atenção das falhas
da Igreja e do Estado.
Nos processos analisados pudemos descortinar crendices, medos, a
preferência de alguns pela medicina-mágica, o temor ao sobrenatural e também o
caráter conspiratório de tais acusações, visto que grande parte dos réus
pertencia a grupos mais pobres e as motivações para tais processos, por vezes,
tinham relação com questões políticas ou econômicas.
No caso dos indígenas, o combate às idolatrias passou necessariamente
pela dificuldade em lidar com uma cultura tão diferente e desconhecida para o
espanhol. Com o passar do tempo, percebe-se que a tônica não estava mais ligada
às dificuldades do processo de alteridade, e sim, aos interesses econômicos e
políticos de certos visitadores e até mesmo de autoridades étnicas. Após
sofrerem com a repressão cultural, indígenas se apropriaram desses mecanismos
de controle à disposição dos setores dominantes da sociedade colonial e
passaram a fazer uso deles para alcançarem seus próprios objetivos.
Percebe-se que a aparente vitória do cristianismo se dissolveu nas
próprias idolatrias, que nada mais eram do que um conjunto de elementos
católicos mesclados com características religiosas indígenas. Daí o
aparecimento de movimentos nativistas de resistência, portadores da idéia de transformar
a sociedade, amparando-se em elementos pré-hispânicos. As idolatrias, como
tais, deveriam ser então descartadas assim como o cristianismo, para dar lugar
à verdadeira religião dos tempos incaicos. A idolatria constituiu a resposta do
indígena ao processo de evangelização levado a cabo pelos espanhóis no período
colonial.
Como na Europa, a luta contra a heresia nos Andes teve fins políticos e
econômicos, pois bruxos e bruxas foram perseguidos por representarem a
resistência ao mundo colonial e as tensões culturais do cotidiano, em que
brancos, índios, mestiços e negros precisaram aceitar as diferenças e somar
elementos para não perder seu poder e significado na sociedade.
A ação inquisitorial e as campanhas de extirpação de idolatrias não foram
suficientes para destruir tais crenças, pois a lógica mental colonial se formou
nessa mescla de crenças e se adaptou fazendo uso dos variados elementos
culturais para recriar seu próprio imaginário religioso. Prova disso, é o
prosseguimento até os dias atuais da crença nos bruxos, no curandeirismo e no
culto a deuses ligados à agricultura e pecuária, que nada mais é do que o
resultado dessa confluência cultural entre europeus, africanos e ameríndios.
[1] AHN, Inquisición, leg.1647, exp.1. Sobre
a causa de María Pizarro ver: TORÍBIO DE MEDINA, José. Historia del Tribunal de la Inquisición de Lima (1569-1820). Santiago:
Fondo Histórico y Bibliográfico J.T. Medina, 1956, p.73-89; CASTAÑEDA DELGADO,
Paulino, HERNÁNDEZ APARICIO, Pilar. La Inquisición de Lima. Tomo I. (1570-1635). Madrid:
Editorial Deimos, 1989, p.297-312; ABRIL CASTELLÓ, Vidal, ABRIL STOFFELS,
Miguel J., Francisco de la Cruz , Inquisición, Actas, Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, Centro de Estudios Históricos, 1992-96. 3 vol.; HUERGA, Álvaro, Historia de los alumbrados
(1570-1630). T. III: Los alumbrados de Hispanoamérica, 1570-1605. Madrid:
Fundación Universitaria Española, 1986, p.65-79 e 127-143; TARDIEU,
Jean-Pierre. Le nouveau David et la
reforme du Pérou. L’affaire Maria Pizarro – Francisco de la Cruz (1571-1596).
Bordeau: Maison des Pays Ibériques, 1992, cap. I e II.
[2] MILLAR CARVACHO, René. Entre ángeles y
demônios. María Pizarro y la Inquisición de Lima 1550-1573. Historia, nº40, vol.II, 2007,
p.382-383.
[3] Como foi
o caso do Fr. Francisco de la
Cruz , originando um enorme processo contra esse dominicano
que acabou condenado à fogueira em 1578. AHN, Inquisición, 1650, Exp.1,
f.554-558.
[4] AHN,
Inquisición, leg. 1647, exp.1, f.115.
[5] HUERGA, Álvaro,
Historia de los alumbrados
(1570-1630). T. III: Los alumbrados de
Hispanoamérica, 1570-1605. Madrid: Fundación Universitaria
Española, 1986, p.112-113.
[6] AHN, Inquisición,
leg.1650, exp.1.
[7] MELÉNDEZ, Juan. Tesoros
verdaderos de las Indias en la
Historia de la gran Provincia de San Juan Bautista del Perú. Roma:
Nicolas Angel Tinassio, 1681, t.I, p.180-188.
[8] ABRIL
CASTELLÓ, Vidal, ABRIL STOFFELS, Miguel J., Francisco de la Cruz ,
Inquisición, Actas, Madrid: Consejo
Superior de Investigaciones Científicas, Centro de Estudios Históricos,
1992-96, p.411.
[9] CASTAÑEDA DELGADO, Paulino,
HERNÁNDEZ APARICIO, Pilar. La Inquisición de Lima. Tomo I. (1570-1635). Madrid:
Editorial Deimos, 1989, p.308.
[10] HUERGA, Álvaro,
Historia de los alumbrados
(1570-1630). T. III: Los alumbrados de
Hispanoamérica, 1570-1605. Madrid: Fundación Universitaria
Española, 1986, p.207-210.
[11] Idem,
p.193 e 234-235.
[12] Ele fazia parte das mais antigas crenças camponesas
européias e também já estava misturado nas crenças religiosas indígenas no
vice-reinado do Peru no período colonial. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente; 1300-1800 uma cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989 e ESTENSORO, Juan Carlos. Del paganismo a la santidad. Lima: IFEA/Instituto Riva Agüero,
2003.
[13] AHN, Libro 1028, f .503r.
[14] Idem, f.505r.
[15] Idem, f.505v.
[16] Idem, f.512r.
[17] AHN, Inquisición, leg.1648, exp.18,
f.35v.
[18] SÁNCHEZ, Ana. Amancebados, hechiceros y rebeldes
(Chancay, siglo XVII). Cuzco: Centro de Estudios Regionales Andinos
Bartolomé de Las Casas, 1991, p.XXXIII.
[19] GRIFFITHS, Nicholas. La cruz y la serpiente: La represión y el
resurgimiento religioso en el Perú colonial. Lima: Fondo Editorial de la Pontifícia Universidad
Católica del Perú, 1998, p.151.
[20] AAL,
Idolatrias, leg. III, exp.2, f.5.
[21] AAL,
Idolatrias, leg.III, exp.1, f.6-10.
[22] AAL, Idolatrias, leg.IV, exp.5.
[23] AAL, Idolatrias, leg.VI, exp.8.
[24] Idem, f.179v.
[25] Bebida
fermentada feita de milho.
[26] AHN,
Inquisición, leg.1656, exp.4.
Ótimo !!!
ResponderExcluirObrigado, linda!!!
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