domingo, 9 de setembro de 2012

O DEMÔNIO NOS ANDES




Já a partir da metade do século XVI começam a aparecer no Vice-Reinado do Peru fenômenos de possessão, pacto com o demônio, bruxaria e outras heresias. Um processo importante e bastante estudado é a causa de Maria Pizarro[1], uma jovem limense acusada de estar endemoniada e que por muitos anos foi exorcizada por um grupo de religiosos, dois jesuítas e três dominicanos. A importância deste processo está relacionada também com o momento em que ocorreu, visto que várias mudanças reformistas estavam em andamento. Não podemos esquecer, que o vice-rei Francisco de Toledo havia chegado em 1569 para dar início a mudanças políticas solicitadas por Felipe II com o objetivo de impor a autoridade real aos colonos, muitos deles descendentes dos primeiros conquistadores. No âmbito religioso ocorreram dois fatos marcantes, a chegada da Companhia de Jesus a Lima em 1568 e a instalação do Tribunal do Santo Ofício em 1569. Esse conjunto de acontecimentos favorecia a política reformista da Coroa e também a tarefa evangelizadora[2] e ao mesmo tempo, propiciou o desenvolvimento de histórias relacionadas com o sobrenatural, como o que ocorreu com Maria Pizarro.
Dentre os vários casos julgados pela Inquisição limense podemos destacar o dessa jovem criolla, que em 1571 é envolvida num longo processo junto com seus confessores, os jesuítas Jerónimo Ruiz de Portillo e Luis López e os dominicanos Fr. Alonso Gasco, Fr. Pedro de Toro e Fr. Francisco de la Cruz. Maria Pizarro dizia ter visões e conversar com seres, que ninguém sabia se eram anjos ou demônios. Por conta disso, várias pessoas começaram a consultá-la achando que fosse uma “iluminada”. O grupo de religiosos acima mencionados passou a revezar-se em sua casa para tentar exorcizá-la e descobrir se ela estava sob o domínio do bem ou do mal. Porém, alguns se envolveram carnalmente com ela, cometendo o grave crime da solicitação. Outros acreditaram em suas visões e vislumbraram a possibilidade de criar-se uma seita, que questionava os dogmas católicos e também o poder da coroa espanhola. O resultado de tal caso foi o início do longo processo inquisitorial contra a dita “iluminada” e esse grupo de religiosos, que passaremos a relatar.
Tudo começou quando o Fr. Alonso Gasco, cheio de remorsos, resolveu se auto-denunciar ao Tribunal do Santo Ofício em julho de 1571. Em suas declarações delatou os demais participantes das sessões de exorcismo em torno de Maria Pizarro[3]. Ele realmente acreditava que a jovem criolla incorporava santos e só sob tortura acabou confessando que se enganara. Foi condenado a auto público, abjuração e desterro. Seu companheiro, o Fr. Pedro de Toro, foi aprisionado logo depois de sua condenação, exatamente em julho de 1572. Ele declarou ter expulsado 8 mil demônios do corpo de Maria Pizarro[4] e por isso, acabou sendo condenado. Fr. Pedro acabou adoecendo, mas recebeu a absolvição sacramental e por ter morrido antes de assinar a sentença de reconciliação, foi necessário fazer sair ao auto sua estátua com hábito penitencial para que sua sentença fosse lida e ele reconciliado. Certos documentos da época mencionam sua participação em um levantamento contra o vice-rei Toledo, levando a crer que sua condenação inicial nada tinha a ver com o exorcismo praticado no caso de Maria Pizarro, e sim, devido aos motivos políticos em que se envolvera[5].
O caso do Fr. Francisco de la Cruz foi bem mais grave[6]. Esse dominicano chegou ao Peru acompanhando o Fr. Domingo de Santo Tomás, visitador e provincial da ordem dominicana no Peru. Tornou-se catedrático em Teologia na Universidade Mayor de San Marcos[7] e era homem de confiança do arcebispo de Lima. Mesmo assim, se envolveu no caso de Maria Pizarro, sendo chamado a depor ante o tribunal em outubro de 1571. Descreveu Maria Pizarro como uma mulher enamorada carnalmente de um demônio, mas ao mesmo tempo, contou sobre um menino caído do céu, que seria o libertador do Peru e, de um anjo, que incorporado na mulher, dizia coisas maravilhosas sobre o tal menino. Tais afirmações deixaram os membros do tribunal surpresos, pois não era um discurso condizente ao de um teólogo, ainda mais que ele admitia acreditar em tais fenômenos sobrenaturais. Acabou sendo preso e acusado de heresia por ter tido trato com o demônio incorporado em Maria Pizarro, por cuja boca lhe falava S. Gabriel e outros santos. Fez pacto com o demônio para aprender magia e para implantar sua seita, disse que nasceria um menino em Lima que seria santo, frade dominicano e a solução para o Peru[8]. Adorava um anjo, tendo por oráculo o que dizia a endemoniada Maria Pizarro e diante de tantas acusações foi solicitada a sua condenação. O frei se defendeu verbalmente e por escrito afirmando que em sua acusação nada comprometia sua fé católica. Em novembro de 1573 foi acusado novamente de querer criar uma seita para levantar-se contra o reino e trair o rei, segundo o queixoso vice-rei Toledo. Foi ainda acusado de defender hereges e feiticeiros e de se auto-intitular profeta e intérprete iluminado de Deus. Não houve mais defesa para ele, acabou sendo considerado herege astuto e pertinaz como nenhum outro e foi sentenciado à fogueira, sendo queimado vivo em 13 de abril de 1578.
Depois dos dominicanos, o Tribunal do Santo Ofício ouviu a jovem criolla e analfabeta Maria Pizarro, aprisionando-a em dezembro de 1572. Na primeira audiência ela se declarou donzela de 22 anos e frente às pressões inquisitoriais acabou relatando suas visões e a dúvida sobre se os seres que lhe apareciam eram santos ou demônios e sobre os exorcismos que lhe fizeram os religiosos envolvidos no caso. Acabou por confessar que havia tido tratos com o demônio que lhe aparecia como um “homem gentil” e havia prometido casar-se com ela. Posteriormente, confessou que teve trato carnal com o P. Luis López e que o P. Ruiz Portillo também teve amizade com ela. Posteriormente voltou atrás em seu testemunho, negando sua relação com o P. López e explicando que só havia dito tais coisas porque estava chateada com ele e que prosseguia donzela como quando nasceu. Em junho de 1573, foi acusada de heresia por ter tido “pacto com o demônio”, porém morreu sem ter assinado a acusação e foi enterrada em segredo. Os inquisidores consultaram a Suprema e alguns anos depois a causa foi suspensa e os herdeiros comunicados do paradeiro de seu corpo[9].
Luis López foi o último a ser interrogado, sendo considerado o principal exorcista no caso de Maria Pizarro. Ele foi um dos fundadores da Companhia de Jesus no Peru, mesmo assim, o acusaram de crer e divulgar que os “incorporados” em Maria Pizarro eram anjos e santos e também por crime de solicitação, visto que se aproveitou sexualmente da jovem criolla. Ele também foi acusado de utilizar “palavras graves” contra sua majestade, bispos e vice-reis, difamar o governo espiritual e temporal e incitar a rebelião projetada por Fr. Francisco de la Cruz. Concluído o processo foi condenado a diversas privações e ao desterro perpétuo. Alguns documentos mostram que ele realmente predicava contra o vice-rei Toledo, o que demonstra que Toledo também se utilizou da Inquisição para livrar-se de opositores. Porém, a influência dos jesuítas e do P. José de Acosta o salvaram de uma pena maior[10]. O P. Ruiz de Portillo não foi processado, não só por ser jesuíta, pois o Tribunal de Lima tinha recebido do Conselho da Suprema Inquisição de Madri indicações para agir com cautela em relação à Companhia de Jesus, mas também pela condição de protegido do vice-rei Toledo, visto ter sido seu mentor espiritual por um tempo[11].
Este processo, em especial, demonstra que a crença no demônio realmente já fazia parte do imaginário colonial[12]. Porém, a coroa e a igreja lançaram mão desse mesmo imaginário para resolver problemas políticos, utilizando o Tribunal do Santo Ofício para colocar ordem nessa sociedade em convulsão. Como constatamos, alguns dos religiosos envolvidos nesse processo predicavam contra a monarquia espanhola e inclusive, como no caso do Fr. Francisco de la Cruz, contestavam os dogmas católicos e proclamavam a destruição da velha cristandade européia em suas profecias. O Fr. Francisco ainda se intitulou o novo Papa da Igreja que ressurgiria em Lima e incitou a população local a escolher um novo monarca para o vice-reino e a levantar-se contra o poder da metrópole. Os membros da Inquisição e o vice-rei Toledo percebendo os perigos de tais discursos trataram de aprisionar e condenar esses religiosos, o que reitera a percepção do caso de Maria Pizarro como motivação para colocar fim ao que poderia ter sido o início de uma sublevação contra os dogmas da Igreja Católica e o domínio da monarquia espanhola e seus representantes no vice-reinado do Peru.


Pachacamac - Deus da costa peruana demonizado pelos espanhóis


  
b. Práticas mágicas em fontes inquisitoriais e de idolatrias

Depois de termos analisado o imbricado processo de Maria Pizarro, passaremos ao exame de fontes inquisitoriais e de idolatrias relacionadas às práticas mágicas, mais propriamente, a feitiçaria e bruxaria com a participação demoníaca.
Como os deuses nativos foram convertidos em figuras malignas e no imaginário de origem hispânica elas sempre habitaram, nesses processos transparece a junção da visão dos religiosos a respeito da demonologia e bruxaria e a demonização do imaginário colonial que se formou após a chegada dos espanhóis ao vice-reinado do Peru.
As relações de causas e processos a que tivemos acesso são bastante resumidas e não permitem recuperar detalhes sobre os acusados, como sua proveniência geográfica, visto que nem sempre é mencionada, ou seu status social. Porém, a maioria dos acusados pela Inquisição e pela Extirpação de praticarem feitiçaria pertencia a grupos mais pobres.
Os feiticeiros eram aquelas pessoas que dominavam a arte da cura, da adivinhação, de preparar filtros do amor e também de praticar malefícios. Nos processos aparecem muitas mulheres ditas “bruxas”, mas em maior número como clientes desses especialistas em magia. Tais homens e mulheres pertenciam a diferentes grupos e a diversidade étnica aparece como uma constante nos processos.
No começo, o Tribunal do Santo Ofício perseguiu massivamente os feiticeiros de origem espanhola, até mesmo por que os indígenas estavam fora de sua jurisdição. Pela análise de alguns processos, podemos perceber que essa divisão não se apresentava tão explícita. Como exemplo, podemos mencionar o caso de várias mulheres que foram acusadas de praticar feitiçaria em 1598 e entre elas, havia duas espanholas, Maria Maldonado de Sevilha e Francisca Ximénez. A primeira defendeu com orgulho seus conhecimentos de rituais e orações próprios de uma sevilhana[13] e certamente foi responsável por repassar esses ritos a muitas outras mulheres. Francisca Ximénez foi uma de suas discípulas e confessou ter prosseguido sua formação consultando diversas outras mulheres para aprender novos conjuros[14]. Em seu depoimento chega a mencionar que
…avia hablado a çiertas yndias hechiceras para que le dixesen çiertas cosas que quería saber y se las dixeron, y no les dio credito[15].

Isso nos faz pensar nos motivos que a levaram a negar sua curiosidade em relação aos conhecimentos indígenas e também porque os inquisidores não lhe pediram detalhes, possivelmente pelo fato de que as tais feiticeiras estavam fora de seu alcance. Na continuação desse processo aparecem outras mulheres, algumas mestiças, e todas afirmam trocar informações entre elas em quéchua, o que demonstra novamente a presença do elemento indígena. Sempre se referem a feiticeiras indígenas a quem consultam, mas o medo de receberem um castigo maior por parte da Inquisição as faz  escamotear a própria história[16]. Esse exemplo demonstra que houve uma circulação de tradições e conhecimentos entre etnias distintas, mas não comprova ainda a formação de novos ritos oriundos de uma mescla cultural.
Em 1662, Magdalena Camacho declara que fazia junto com outras mulheres o “conjuro de la anima sola” para que lhe trouxesse o amante ausente. Depois de feito o conjuro, rezava alguns credos e
…dezía que los depositaba en las faldas de nuestra señora da Virgen Maria para ofrecerlos por el ánima sola, para que saliesse de sus penas en trayendo al hombre a la voluntad de la mujer[17].

Percebe-se através desse processo que paulatinamente foi se formando uma tradição comum aos membros dos diversos grupos étnicos, ilustrando as transformações ocorridas com a feitiçaria no início do século XVII. A troca de conhecimentos entre colegas de diferentes etnias, proporcionou a recomposição de rituais em que as orações e conjuros que provinham dos modelos espanhóis se mesclam ao uso da coca, do tabaco e outros objetos que pertenciam à cultura indígena e africana.
Lima vivia no século XVII um “clima de milagrería” que não favorecia o desenvolvimento da medicina científica, por isso, a medicina popular detinha diversos conhecimentos adquiridos nas transferências culturais que se produziam na vida cotidiana[18].
A Extirpação também reproduziu o ceticismo e a incredulidade que caracterizou a perseguição aos feiticeiros pela Inquisição na Espanha metropolitana. Os visitadores descartaram a possibilidade de existência de uma autêntica presença demoníaca nas atividades dos especialistas religiosos andinos[19]. Porém, há vários casos em que o acusado não só testifica o pacto diabólico como confirma ter mantido relações sexuais com o demônio. Um exemplo disso é o caso de Inês Carva que em 1650 afirmou ter falado várias vezes com o diabo e que o recebia em seu leito da mesma maneira que receberia seu esposo[20]. Juana Icha, outra acusada, insistiu na sua ligação com o demônio, pois este havia lhe concedido os ensinamentos sobre curandeirismo e a adivinhação[21]. Esses casos demonstram que muitas vezes os acusados prestavam o testemunho que correspondia aquilo que os espanhóis tinham como pré-concebido.
O processo de María Ynes, “la de narices cortados”, de 1662 é outro exemplo de curandeira que foi acusada de ser feiticeira, adivinha e curar com superstições por possuir pacto com o demônio[22].
Em 1668, a índia Juana de Mayo, julgada por idolatria, se reunia com uma espanhola, uma mestiça e uma mulata para fazer seus conjuros, mas ao adoecer foi a uma negra que ela recorreu[23]. Isso demonstra que não importava a etnia, pois esses feiticeiros(as) funcionavam como intermediários entre o mundo dos homens e o universo e a eles todos procuravam para sanar problemas, curar enfermidades, resolver problemas de amor, inveja e qualquer outro assunto em que o poder das forças ocultas pudesse ajudar efetivamente.
Outro processo expressivo é o de Gerónimo de Ortega que foi processado em 1705 e em seus intentos de obter favores do demônio lança mão de todas as tradições culturais:
Demônio africano, tu que dizen eres señor del África, como tan poderoso ayúdanos y danos fortuna así para el juego como para nuestros amores y te convocaremos en adelante y detestaremos el auxilio de Dios, y puesto de rodillas cogían la yerba coca en las manos y la lebantaban en alto[24].

Ele usa a magia espanhola, faz pacto com o demônio, utiliza a coca, chicha[25], milho, aguardente, penas, cabelos humanos, procura bruxas e tudo o que for necessário para alcançar seus propósitos de receber as benesses do além.
A causa de Lorenza Vilchez[26], natural do povoado de Guayau da província de Tauyou do Arcebispado de Lima (mapa em anexo), datada de 1762, é mais um exemplo de como os mestiços desempenharam importante papel de “intermediários culturais” e consequentemente acabavam sofrendo a repressão inquisitorial. Lorenza era casada, lavradora e foi acusada de ter pacto com o demônio. Todas as testemunhas, mestiços, índios e brancos, afirmaram ser ela adivinha, mas não bruxa, pois conseguia achar coisas perdidas e descobrir feitiços e desmanchá-los. Tinha mais de 50 anos e manifestou total ignorância da doutrina cristã e não sabia sequer uma oração. Quando o fiscal leu sua sentença ela disse não haver cometido heresia e nem apostasiado. Porém, acabou por confessar que mantinha relações com o demônio, pois este lhe aparecia sempre como um homem gentil. Como para os inquisidores as mulheres eram sempre mais propensas ao encanto e à bruxaria, depois de ter confessado a apostasia e a idolatria formal com pacto expresso com o demônio, pediram que abjurasse e a reconciliaram, porém condenaram-na à prisão perpétua. Seu processo demonstra que na sociedade colonial do século XVIII persistiram as crenças nas práticas mágicas, inclusive com a participação do demônio, como uma forma de oposição aos costumes católicos. A troca de saberes, entre as diferentes culturas, se fez presente nos três séculos do período colonial, propiciando o bom funcionamento dessa sociedade.
Nos exemplos apresentados encontramos alguns dos ‘intermediários culturais” responsáveis por interceder junto às forças ocultas na resolução de problemas terrenos e que compartilhavam dos mesmos saberes e discursos. Diferente do processo de Maria Pizarro, que também tinha uma motivação política pautada nos conflitos entre as ordens religiosas, os processos acima mencionados estavam atrelados ao imaginário do período colonial, em que a população era extremamente crédula em relação ao sobrenatural e aderia à cumplicidade contra as forças malignas para alcançar seus objetivos e escapar aos dilemas do cotidiano. De certo modo, essas práticas ajudaram a manter a união entre as diversas culturas e a superar alguns dos problemas sociais que afetavam a população do Arcebispado de Lima no período colonial.
Muitas foram as causas para a perseguição de bruxos e bruxas no Arcebispado de Lima no período colonial. Entre elas, temos o fato de que a sociedade via os feiticeiros como aqueles que conseguiam através de suas técnicas ocultas remediar situações que escapavam ao controle das pessoas comuns. Os feiticeiros cientes de seu poder exploravam essa situação a seu favor. A forma encontrada para combater esse poder foi através da Inquisição e dos tribunais ordinários com o resgate das artes maléficas associadas ao pacto diabólico, insuflado pelo espírito da Contra-Reforma. Era necessário minimizar essa transgressão aos cânones da ortodoxia, que também simbolizava perigo à solidez do Estado. Podemos afirmar que essa foi uma solução para algumas tensões existentes na sociedade, usando para isso o imaginário coletivo de medo do diabo e dos bruxos para, entre outras coisas, desviar a atenção das falhas da Igreja e do Estado.
Nos processos analisados pudemos descortinar crendices, medos, a preferência de alguns pela medicina-mágica, o temor ao sobrenatural e também o caráter conspiratório de tais acusações, visto que grande parte dos réus pertencia a grupos mais pobres e as motivações para tais processos, por vezes, tinham relação com questões políticas ou econômicas.
No caso dos indígenas, o combate às idolatrias passou necessariamente pela dificuldade em lidar com uma cultura tão diferente e desconhecida para o espanhol. Com o passar do tempo, percebe-se que a tônica não estava mais ligada às dificuldades do processo de alteridade, e sim, aos interesses econômicos e políticos de certos visitadores e até mesmo de autoridades étnicas. Após sofrerem com a repressão cultural, indígenas se apropriaram desses mecanismos de controle à disposição dos setores dominantes da sociedade colonial e passaram a fazer uso deles para alcançarem seus próprios objetivos.
Percebe-se que a aparente vitória do cristianismo se dissolveu nas próprias idolatrias, que nada mais eram do que um conjunto de elementos católicos mesclados com características religiosas indígenas. Daí o aparecimento de movimentos nativistas de resistência, portadores da idéia de transformar a sociedade, amparando-se em elementos pré-hispânicos. As idolatrias, como tais, deveriam ser então descartadas assim como o cristianismo, para dar lugar à verdadeira religião dos tempos incaicos. A idolatria constituiu a resposta do indígena ao processo de evangelização levado a cabo pelos espanhóis no período colonial.
Como na Europa, a luta contra a heresia nos Andes teve fins políticos e econômicos, pois bruxos e bruxas foram perseguidos por representarem a resistência ao mundo colonial e as tensões culturais do cotidiano, em que brancos, índios, mestiços e negros precisaram aceitar as diferenças e somar elementos para não perder seu poder e significado na sociedade.
A ação inquisitorial e as campanhas de extirpação de idolatrias não foram suficientes para destruir tais crenças, pois a lógica mental colonial se formou nessa mescla de crenças e se adaptou fazendo uso dos variados elementos culturais para recriar seu próprio imaginário religioso. Prova disso, é o prosseguimento até os dias atuais da crença nos bruxos, no curandeirismo e no culto a deuses ligados à agricultura e pecuária, que nada mais é do que o resultado dessa confluência cultural entre europeus, africanos e ameríndios.



[1] AHN, Inquisición, leg.1647, exp.1. Sobre a causa de María Pizarro ver: TORÍBIO DE MEDINA, José. Historia del Tribunal de la Inquisición de Lima (1569-1820). Santiago: Fondo Histórico y Bibliográfico J.T. Medina, 1956, p.73-89; CASTAÑEDA DELGADO, Paulino, HERNÁNDEZ APARICIO, Pilar. La Inquisición de Lima. Tomo I. (1570-1635). Madrid: Editorial Deimos, 1989, p.297-312; ABRIL CASTELLÓ, Vidal, ABRIL STOFFELS, Miguel J., Francisco de la Cruz, Inquisición,  Actas, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Centro de Estudios Históricos, 1992-96. 3 vol.; HUERGA, Álvaro, Historia de los alumbrados (1570-1630). T. III: Los alumbrados de Hispanoamérica, 1570-1605. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1986, p.65-79 e 127-143; TARDIEU, Jean-Pierre. Le nouveau David et la reforme du Pérou. L’affaire Maria Pizarro – Francisco de la Cruz (1571-1596). Bordeau: Maison des Pays Ibériques, 1992, cap. I e II.
[2] MILLAR CARVACHO, René. Entre ángeles y demônios. María Pizarro y la Inquisición de Lima 1550-1573. Historia, nº40, vol.II, 2007, p.382-383.
[3] Como foi o caso do Fr. Francisco de la Cruz, originando um enorme processo contra esse dominicano que acabou condenado à fogueira em 1578. AHN, Inquisición, 1650, Exp.1, f.554-558.
[4] AHN, Inquisición, leg. 1647, exp.1, f.115.
[5] HUERGA, Álvaro, Historia de los alumbrados (1570-1630). T. III: Los alumbrados de Hispanoamérica, 1570-1605. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1986, p.112-113.
[6] AHN, Inquisición, leg.1650, exp.1.
[7] MELÉNDEZ, Juan. Tesoros verdaderos de las Indias en la Historia de la gran Provincia de San Juan Bautista del Perú. Roma: Nicolas Angel Tinassio, 1681, t.I, p.180-188.
[8] ABRIL CASTELLÓ, Vidal, ABRIL STOFFELS, Miguel J., Francisco de la Cruz, Inquisición,  Actas, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Centro de Estudios Históricos, 1992-96, p.411.
[9] CASTAÑEDA DELGADO, Paulino, HERNÁNDEZ APARICIO, Pilar. La Inquisición de Lima. Tomo I. (1570-1635). Madrid: Editorial Deimos, 1989, p.308.
[10] HUERGA, Álvaro, Historia de los alumbrados (1570-1630). T. III: Los alumbrados de Hispanoamérica, 1570-1605. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1986, p.207-210.
[11] Idem, p.193 e 234-235.
[12] Ele fazia parte das mais antigas crenças camponesas européias e também já estava misturado nas crenças religiosas indígenas no vice-reinado do Peru no período colonial. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente; 1300-1800 uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 e ESTENSORO, Juan Carlos. Del paganismo a la santidad. Lima: IFEA/Instituto Riva Agüero, 2003.
[13] AHN, Libro 1028, f.503r.
[14] Idem, f.505r.
[15] Idem, f.505v.
[16] Idem, f.512r.
[17] AHN, Inquisición, leg.1648, exp.18, f.35v.
[18] SÁNCHEZ, Ana. Amancebados, hechiceros y rebeldes (Chancay, siglo XVII). Cuzco: Centro de Estudios Regionales Andinos Bartolomé de Las Casas, 1991, p.XXXIII.
[19] GRIFFITHS, Nicholas. La cruz y la serpiente: La represión y el resurgimiento religioso en el Perú colonial. Lima: Fondo Editorial de la Pontifícia Universidad Católica del Perú, 1998, p.151.
[20] AAL, Idolatrias, leg. III, exp.2, f.5.
[21] AAL, Idolatrias, leg.III, exp.1, f.6-10.
[22] AAL, Idolatrias, leg.IV, exp.5.
[23] AAL, Idolatrias, leg.VI, exp.8.
[24] Idem, f.179v.
[25] Bebida fermentada feita de milho.
[26] AHN, Inquisición, leg.1656, exp.4.

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