quarta-feira, 6 de julho de 2011

ARTE INDÍGENA?

A conceituação de arte aplicada ao material produzido por grupos indígenas, independe da etnia a que pertencem. Os artefatos produzidos por esses povos continuam a ser considerados artesanato, ou seja, o artesão apenas repete modelos pré-existentes, caracterizando assim uma arte menor. Porém, não podemos esquecer que esses ditos modelos representam o resultado da confluência de concepções coletivas e individuais, não privilegiando o individualismo como na arte ocidental.

Os produtos artesanais, em geral, são fabricados em grande escala, o que acarreta uma tendência à homogeneização e seus produtores transformam seu trabalho em mercadoria. Dificilmente um artesão consome seu próprio produto. Ao contrário, os objetos produzidos por indígenas podem ser chamados de artísticos, pois muito embora possam ter uma utilidade prática, possuem a qualidade do belo e portam códigos sociais e conteúdos mágicos e religiosos das comunidades que os produzem[1].
Percebemos então, que a melhor maneira de examinar essa peculiaridade dos materiais produzidos por grupos indígenas é à luz da “etno-estética”.
A etno-estética dá ênfase à necessidade de estudar em sua totalidade o contexto da arte para poder entender sua estrutura simbólica e sua integração com outros domínios da cultura. Seu propósito é apresentar a arte y a estética de outras culturas desde o ponto de vista de seus criadores[2].

Para estudarmos peças indígenas, temos que entender a história do grupo étnico analisado, seu modo de vida, sua cosmovisão e o significado de seus códigos de conduta, que muitas vezes não dizem respeito apenas ao grupo em questão, mas também àqueles com quem praticam o intercâmbio.
Para exemplificarmos tal estudo, analisaremos algumas peças produzidas pela cultura Inca que habitou grande parte da zona andina no final do século XV e início do XVI, quando chegaram os espanhóis. Para entendermos a complexidade de suas obras, precisamos antes conhecer um pouco da história da formação do Império Inca.
Os incas são provenientes da região próxima ao Lago Titicaca e segundo seus mitos são filhos do deus Sol, que os enviou numa missão “civilizatória” para o Vale de Cuzco, de onde prosseguiram em seu projeto expansionista. Para que isso acontecesse foi fundamental a reciprocidade praticada com as demais etnias a serem assimiladas pelo Império. Essa reciprocidade era uma característica de todos os povos que habitavam a região andina e se dava dentro dos grupos de parentesco, ou seja, quando indivíduos de ayllus intercambiavam produtos e serviços[3].
A inexistência de dinheiro e comércio no mundo andino foi substituída pela reciprocidade e redistribuição que ajudaram a organizar a economia e a estrutura social incaica. A terra era o elemento mais importante para a população andina, mas durante o domínio inca foi repartida em terra do Inca, do Sol e do povo. Cada família recebia seu pedaço de terra para plantar e criar animais, tirando daí o seu sustento. O tamanho da área territorial que o Estado tomava para si de cada grupo étnico variava, pois de acordo com as palavras de Polo de Ondegardo, isso se dava em conformidade com a natureza das terras e de sua população. As terras dedicadas ao culto eram cultivadas e administradas separadamente e o produto da colheita armazenado em depósitos próprios[4].
Quando o Tahuantinsuyu se formou foi indispensável contar com a força de trabalho dos diversos grupos étnicos anexados aos domínios incas através da reciprocidade. A posse da terra centralizou o poder na figura do Inca, o que propiciou o controle de toda a produção necessária para a redistribuição. Dessa maneira, as bases da economia incaica, a reciprocidade e a redistribuição, prosseguiram funcionando tanto nos ayllus, como em relação ao Estado, beneficiando, em parte, a integração do território inca, já que algumas etnias prosseguiram insatisfeitas ante o domínio incaico.
Para que esse sistema funcionasse era necessário que o Inca visitasse esporadicamente todos os chefes locais de seu território presenteando-os com artigos de luxo, como cerâmicas, tecidos, arte plumária e outros. Sendo assim , os chamados artesãos eram fundamentais não só pela alta qualidade de seus produtos, mas porque as suas tarefas eram fundamentais para o funcionamento da reciprocidade.
Porém, como podemos observar nas peças abaixo, esses produtos não eram apenas uma realidade material, e sim, formas de pensamento, pois expressavam a necessidade de legitimação do poder Inca. Serviam para explicar a cosmovisão incaica e principalmente, o seu desígnio divino para dominar tais populações, visto serem eles os portadores dos ensinamentos agrícolas que propiciaram a sedentarização daqueles povos outrora “selvagens”.
Começamos com a imagem do “orejone” inca, que deverá ser visto como “aquele que manda” e a simbologia do poder é expressa através dos grandes orifícios nas orelhas, que eram preenchidos por discos de madeira ou de ouro.


(Qero Inca)


No campo sagrado, temos a representação do deus Viracocha em ouro, que é uma das principais figuras da religião incaica e que numa amostra da soberania desse povo, conforma uma faca de sacrifícios, que tanto poderiam ser de animais como humanos. Percebemos desse modo, que o Império Inca não utilizou apenas a reciprocidade para garantir a sua expansão, mas também as crenças nos deuses e principalmente, o temor de uma vingança destes, caso o povo não se submetesse.




(Tumi[5] em ouro)

Percebemos que as idéias não se desprendem da matéria e os conceitos indígenas se expressam diretamente através de elementos materiais, sejam eles naturais ou feitos pelo próprio homem. Assim, seus produtos cristalizam o mundo cultural, material e ideal de suas sociedades e os contem.
Outros exemplos são os huacos[6] eróticos produzidos para explicar o funcionamento do corpo humano, a sexualidade e o quanto ela deve ser bem aceita entre os povos andinos, pois a reprodução é fundamental para a sobrevivência de sociedades que vivem do trabalho coletivo da terra.  Esses objetos não podem ser vistos como mero artesanato, pois sua essência é pedagógica e demonstrativa da simbologia e necessidades incaicas e de grupos pré-incaicos.





  
(Huacos eróticos em argila)


Hoje sabemos que isso está se perdendo, pois as comunidades indígenas inseridas no sistema capitalista estão convertendo sua arte em artesanato. Aquilo que antes era expressão de um mundo simbólico não dissociável do mundo real, agora é apenas um produto para participar do processo comercial, o que leva, por vezes, à perda do sentido tradicional. Esses produtos retirados de seu contexto perdem o sentido de sua confecção original, pois passados a mãos alheias se distanciam de seus significados e importância e se convertem em artesanato. Quem adquire uma peça dessas, nada sabe sobre a vida de quem a produziu e muito menos, sobre o que representa para quem a elaborou e isso leva à descaracterização cultural e social dos grupos indígenas.
Esperamos ter conseguido mostrar com esses pequenos exemplos que os povos indígenas criaram peças artísticas e não somente artesanato, visto como uma mera repetição do mesmo padrão tradicional. A produção cultural indígena é dinâmica e sua plasticidade é resultante de confluências culturais e inquietações coletivas. Se hoje alguns grupos são levados a produzir suas obras em série, distanciando-se por completo das antigas particularidades de suas culturas e esquecendo o sentido original das mesmas, isso se deve à luta pela sobrevivência impingida pelo colonizador branco, que ainda hoje continua expropriando terras e confinando grupos indígenas a parcos territórios, onde eles sequer conseguem o material outrora utilizado na confecção de suas peças.

BIBLIOGRAFIA
PEASE, Franklin. Del Tawantinsuyu a la Historia del Perú. Lima: IEP, 1978.
______________. Los Incas. 2.ed. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, 1992.
POLO DE ONDEGARDO, Juan. Informaciones acerca de la religión e gobierno de los incas. In: URTEAGA, Horacio H. CLDRHP. Lima: Imprenta y Librería San Marti, 1916.
ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO, María. Etnía y sociedad. Costa peruana prehispánica. Lima: IEP, 1977.
__________________________________________. Historia del Tahuantinsuyu. 2.ed. Lima: IEP, 1988.
__________________________________________. Ensayos de historia andina: élites, etnías, recursos. Lima: IEP/BCRP, 1993.
ROWE, John H. Inca culture at the time of the spanish conquest. In: STEWARD, H. Julian. Handbook of South American Indians. New York: Cooper Square Publishers INC, 1963. V.2: The Andean Civilizations, edited by Julian H. Steward.
R. HERRERA, Neve Enrique. Artesanía y organización social de su producción. Estructura de su organización  gremial. Centro de Investigación y Documentación de Artesanías de Colombia “Cendar”, Santafé de Bogotá, 1992.
WACHTEL, Nathan. Sociedad e ideología; ensayos de historia y antropologia andina. Lima: IEP, 1973.
WHITTEN JR., Norman E., WHITTEN S., Dorothea. Reflections on ethnoaesthetics and art worlds. In: GUCHTE, Maarten van de (Ed.). Masquerades and Demons. Tukuna Bark-Cloth painting. Krannert Art Museum and Kinkead Pavilion. Urbana-Champaign: University of Illinois, 1992.


[1] R. HERRERA, Neve Enrique. Artesanía y organización social de su producción. Estructura de su organización  gremial. Centro de Investigación y Documentación de Artesanías de Colombia “Cendar”, Santafé de Bogotá, 1992, p.27.
[2] WHITTEN JR., Norman E., WHITTEN S., Dorothea. Reflections on ethnoaesthetics and art worlds. In: GUCHTE, Maarten van de (Ed.). Masquerades and Demons. Tukuna Bark-Cloth painting. Krannert Art Museum and Kinkead Pavilion. Urbana-Champaign: University of Illinois, 1992,  p.31.
[3] "La reciprocidad se ejercía, entonces, a través de la mutua prestación de energía humana para la producción comunitaria; a esto llamaron los cronistas ayni, considerándolo como una suerte de ayuda mutua y no como la obligación que era, originada en los lazos del parentesco”  PEASE, Franklin. Los Incas. Lima: PUC, 1992, p.60.
[4] POLO DE ONDEGARDO, Juan. Informaciones acerca de la religión e gobierno de los incas. In: URTEAGA, Horacio H. CLDRHP. Lima: Imprenta y Librería San Marti, 1916, p.58.
[5] Faca de sacrifício.
[6] Objetos sagrados de cerâmica.

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