Diablada - Puno - Peru
(http://listas.rpp.com.pe/arteycultura/326-la-diablada-punena-y-la-virgen-de-la-candelaria)
Nesse estudo trabalhamos com a diferença de interpretação
histórica e literária e sua importância na análise de crônicas dos séculos XVI
e XVII sobre a história da conquista e colonização do antigo vice-reinado do
Peru, procurando entender o imaginário demonológico dos espanhóis que
participaram e descreveram esse encontro cultural. Para proporcionar uma melhor
compreensão do tema, analisamos parcialmente a crônica do Jesuíta Anônimo
através de uma leitura isotópica mostrando como este cronista fez alusão à
participação de forças diabólicas em atividades contrárias à catequese com o
intuito de persuadir o leitor a crer na benevolência e superioridade da
Companhia de Jesus no processo de evangelização dos povos andinos. Essa obra
exemplifica o encontro de imaginários, em que realidade e ficção se mesclaram
para enaltecer as atividades jesuíticas.
Apresentação
Os historiadores utilizam as crônicas como fontes históricas, mas estas
são discursos, por vezes, impregnados de dados ficcionais, sendo necessário
perceberem-se as fronteiras discursivas (PORTUGAL, 2001. p.151-160), onde as
narrações de cunho histórico e fictício se encontram para formar um discurso
híbrido.
Utilizando a leitura isotópica, enquanto método semiótico, para analisar
um fragmento da crônica espanhola Relacion
de las costumbres antiguas de los naturales del Pirú do Jesuíta
Anônimo (In BARBA, 1968, p.181-189), procuraremos mostrar como este cronista ao
tratar da evangelização dos povos andinos, embora tenha produzido um texto que
hoje utilizamos como fonte histórica, lançou mão de artifícios, por vezes,
imaginários, para provar a ineficácia das primeiras campanhas religiosas e
valorizar a catequese empreendida pela Companhia de Jesus no século XVI.
A permeabilidade das fronteiras
discursivas permite o encontro e a mistura da realidade com a ficção e a
negociação de discursos culturais distintos.
Interpretação histórica e
literária
A dificuldade de analisar-se um texto histórico, fruto da mescla entre
realidade e imaginação de homens do século XVI, leva-nos a uma discussão há
muito trabalhada pelos críticos literários, que vêem na possibilidade de desconstrução (DERRIDA, 1972) de um texto um número ilimitado de leituras,
visto que o discurso histórico produz interpretações
narrativas sobre o passado (WHITE, 1994, p.23-48).
O protagonista desta discussão tem sido Hayden White, que não vê como
problema principal entre a história e a literatura, a oposição entre “verdade”
num texto histórico e “ficcionalidade” numa narrativa literária, e sim, como a
primeira se assemelha à segunda, visto que as técnicas e estratégias são as
mesmas (1994, p.105-106). O autor não nega as fronteiras existentes entre as
duas disciplinas, mas salienta a possibilidade de se avaliar obras
historiográficas, não apenas segundo o critério de veracidade, mas também
analisando sua dimensão literária.
Jacques Derrida, defensor da negação da distinção entre filosofia e
literatura[1], é
um dos chamados desconstrutivistas, que analisam o texto como fenômeno comum a
todas as disciplinas, dando prioridade à retórica frente à lógica para sua
interpretação. A interpretação literária, segundo a teoria de Hayden White,
complementa a análise historiográfica, mas com Derrida, se converte no eixo central.
Essa discussão nos aproxima de nosso tema, que será analisado
realizando-se uma leitura isotópica do trecho de uma crônica do século XVI,
redigida por um jesuíta, que tinha, por um lado, como exemplos literários as
novelas cavalheirescas e por outro, estava imbuído de preceitos religiosos.
Os leitores espanhóis estavam acostumados a novelas que narravam seres e
feitos extraordinários e nem sempre era fácil acreditar nas descrições
produzidas pelos cronistas que atravessaram o Atlântico e que tratavam de um
mundo distinto do seu. Desse modo, os cronistas esforçaram-se em provar que
seus escritos eram baseados num conhecimento profundo da realidade no Novo
Mundo, para que seus leitores não os considerassem meros novelistas (KOHUT,
1992, p.38-44). Percebe-se uma necessidade de diferenciar a produção
historiográfica da literária, sendo que os cronistas utilizaram os recursos
literários para escrever suas histórias, bem como, novelistas atuais, usam
recursos historiográficos para fazer literatura.
Cronistas e crônicas
quinhentistas
Raúl Porras Barrenechea analisou grande parte das crônicas que trataram
da história do Peru. Segundo seus estudos, as crônicas da conquista foram a
primeira história peruana. A crônica castelhana, ao transplantar-se à América,
trazia consigo uma essência própria e uma larga tradição. No primeiro momento,
relataram as aventuras espanholas e depois, passaram a tratar da história dos
povos por eles conquistados, baseando-se na tradição oral e em sistemas de
memória (1986, p.7-8).
As crônicas na Europa do século XV e XVI estavam em vias de
desaparecimento, mas sobreviveram na América (ROMANO, 1972, p.54). Esse mundo
novo suscitou a curiosidade de muitos homens que o quiseram descobrir e
interpretar, segundo seus próprios modelos culturais. Porém, o resultado de
tais estudos dependeu do tipo de homens que os realizaram[2].
Desse modo, temos distintos estudos, pois enquanto uns cronistas
dedicavam-se à escrita de suas próprias façanhas, outros cumpriam seu dever ao
descreverem estas terras para a Coroa e no caso dos religiosos, estes se
dedicavam à defesa da evangelização e ao relato de histórias oficiais para a
Igreja.
Os cronistas não só escreveram sobre assuntos diferentes, bem como
analisaram os fatos de acordo com os costumes do período em que estavam
vivendo.
Conforme Barrenechea, os cronistas que escreveram sobre a história do
Peru podiam ser classificados do seguinte modo: cronistas do descobrimento (1524 a 1532); cronistas da
conquista (1532 a
1537); cronistas das guerras civis (1538 a 1550); cronistas do incário (1550 a 1650); cronistas
pré-toledanos (1550-1569); cronistas toledanos (1569-1581) e os cronistas
pós-toledanos (fins do século XVI e princípios do XVII). Essa classificação foi
realizada tomando em conta o momento em que os cronistas escreveram suas obras,
além de diferenciá-los por profissões e opiniões que se coordenaram, em geral,
com as circunstâncias históricas e com os estados de ânimo coletivos que
impulsionaram a escrever as crônicas (1986, p.16-18).
Para analisarmos crônicas, necessitamos reportar-nos ao período em que
esses homens as escreveram, visando entender que influências circunstanciais
sofreram. Para tal, antes de passarmos à análise do fragmento da crônica acima
mencionado faremos um estudo sintético do contexto vivenciado por nosso
cronista.
El Aquelarre, Francisco de Goya, 1823.
Imaginário, demonologia e
encontro cultural
Na Espanha do século XVI havia uma preocupação muito grande em resolver o
problema dos judeus conversos e, por isso, se dedicavam a perseguir e punir os
delitos dos judaizantes. Por sua vez, a perseguição à bruxaria não foi
significativa e houve poucos registros de execuções em relação ao resto da
Europa. Isso, talvez se deva ao fato de a Península Ibérica se viu pouco
afetada pelo discurso demonológico que grassava por todo o continente europeu.
Porém, quando os espanhóis chegaram à América passaram a perseguir tudo aquilo
que temiam ou não compreendiam. O diabo e a bruxa atravessaram o oceano e se
refugiaram no Novo Mundo e cabia aos espanhóis expulsá-los. A partir daí, os cronistas
espanhóis passaram a descrever as religiões indígenas como cultos ao demônio.
Conseqüentemente, durante o século XVI começam no Peru as campanhas de
Extirpação de Idolatrias, que tinham por objetivo terminar com toda a espécie
de ídolos e rituais, considerados por eles, heréticos.
A idolatria contradizia o cristianismo, visto que repousava sobre uma
adoração de criaturas, enquanto o cristianismo pregava a adoração do Criador,
ou seja, Deus (DUVIOLS, 1986, p.XXVII). Para tanto, seguiu-se em terras andinas,
os passos da inquisição européia, utilizando a repressão para suprimir,
extirpar todo e qualquer vestígio de religião que não fosse a cristã.
Obras, como o Directorium
inquisitorum ou Manual dos
inquisidores (EYMERICH, 1973) e o Malleus
maleficarum (SPRENGER & KRAMER, s/d),
serviram para fundamentar os Concílios de Lima (DUVIOLS, op. cit.,1986),
que eram os regulamentos de combate às heresias indígenas. O Directorium descrevia as categorias de
heréticos a serem reconciliados ou “relaxados ao braço secular”, quando
necessário fosse. Os autores de Malleus
atribuíram às mulheres as artes maléficas, visto serem estas marcadas pelo
pecado original de Eva e mais fracas diante das tentações do demônio. Essa obra
tratou em detalhes a maneira demoníaca como as bruxas agiam e como era possível
identificá-las, servindo de guia para os inquisidores e aconselhando-os para
que não aceitassem o arrependimento como motivo para não condená-las à
fogueira, visto serem elas perniciosas à cristandade. No caso dos extirpadores,
os mesmos preceitos foram seguidos, mas os castigos eram bem diferentes dos
empregados nas ações inquisitoriais não havendo, por exemplo, a condenação à
fogueira.
Nos três Concílios de Lima de 1551, 1567 e 1568 foram tratados os
principais objetivos da extirpação de idolatrias e a forma como deveriam ser
castigados aqueles que fossem acusados de idólatras. Chamou-se a atenção para
que fossem perseguidos com mais intensidade os feiticeiros e dogmatizadores,
sendo que estes poderiam ser submetidos aos mais severos castigos, inclusive a
pena de morte.
No começo das campanhas de extirpação de idolatrias houve disputas entre
o clero regular, que tinha uma postura indigenista favorável a uma
evangelização por persuasão e não pela violência (LAS CASAS, 1975) e o clero
secular favorável às extirpações. Nesse período, criou-se o cargo de juiz
visitador com o intuito não só de extirpar a religião andina, mas também de
liquidar os religiosos regulares, submetendo-os ao seu poder e acusando-os de
explorarem a população indígena e de não conhecerem as línguas vernáculas, o
que dificultava a predicação.
A extirpação de idolatrias teve seu período de maior atividade de 1610 a 1660 e apesar dos
confrontos entre o clero regular e o clero secular, a partir de 1610 a Companhia de Jesus
conseguiu empreender sua campanha de cristianização. Seguindo uma política
missioneira relativa à zona andina, conforme foi tratada por José de Acosta
(1954) e usando critérios indigenistas e coletivistas, os jesuítas conseguiram
alcançar a elite indígena através do Colegio
del Príncipe, em Lima, onde os filhos de curacas (chefes locais) eram educados. Também criaram a prisão para
feiticeiros, a Casa de Santa Cruz,
com a finalidade de suprimir a elite de sacerdotes da religião indígena. A Companhia
praticamente dominou religiosa e culturalmente o território peruano nesse
período.
A tentativa de ocidentalização da América se deu através da evangelização
e da extirpação de idolatrias, através da reprodução de lógicas mentais da
velha Europa no Novo Mundo (GRUZINSKI in BERNAND, 1994) e uma prova disso, é o
transporte para os Andes do diabo e de sua aliada, a bruxa. Porém, o mundo
andino não conhecia a noção do mal encarnado em uma figura satânica, e sim, uma
visão dialética em que o bem e o mal são complementos. Desta forma, os
extirpadores conseguiam que os acusados acabassem por confessar a ligação com o
diabo, pois essa noção européia acabou por mesclar-se com as estruturas
simbólicas indígenas. Quanto à fragilidade moral feminina, que segundo a
concepção européia, explicava a existência de um grande número de bruxas,
também não está de acordo com a visão indígena, que ao contrário, conferia à
mulher importante papel na manutenção e reprodução da existência social.
Por meio de tortura, os visitadores conseguiam as evidências que
necessitavam para condenar o acusado, assim um grande número de curandeiros
confessou ter recebido seus conhecimentos de ervas através de pactos
demoníacos. Os deuses andinos estavam perdendo a força diante das adversidades
coloniais, estavam se calando e conforme Todorov é necessário ter o domínio dos
signos para que se possa manter o poder (1988).
Na obra de José de Arriaga, aparece um exemplo do imaginário europeu
alterando significativamente a simbologia de rituais indígenas. Este descreve a
ação de feiticeiros que adoravam o demônio e com ele mantinham relações homo e
heterossexuais durante festas e durante a noite estes entravam na casa de
pessoas a quem queriam enfeitiçar, sugando-lhes sangue e depois cozinhando-o
fazendo com que viessem a falecer (ARRIAGA, 1968. p. 208). Percebemos que esse
tipo de narrativa muito se assemelha à descrição da comunhão diabólica do sabá[3],
ou seja, através de comportamentos ritualísticos andinos Arriaga sugere o sabá,
o que leva a crer que os bruxos andinos tenham sido bastante atormentados pelos
extirpadores para que estes conseguissem tais relatos. Essa explanação
demonstra ser a bruxaria andina uma invenção espanhola.
Na crônica do Jesuíta Anônimo, aparecem muitos relatos baseados no
imaginário cristão em que a figura do demônio leva os homens a contrariarem a
vontade divina e por vezes, afastando-os da salvação. Nosso cronista, como
tantos outros da época, usa indistintamente os vocábulos Diabo e Demônio para
se referir à figura opositora de Deus. Seus escritos demonstram a demonização
do indígena e a concepção do índio enquanto vítima das armadilhas do Diabo com
possibilidade de ser salvo por Deus e convertido ao cristianismo. O discurso de
nosso jesuíta prioriza a segunda argumentação, pois culpa os outros religiosos
pela demora e ineficácia no processo de evangelização e se esforça em provar
que os inacianos foram convocados para atuar no vice-reinado do Peru por serem
os mais preparados para exercer tais atividades.
Percebemos aqui a importância do entendimento do imaginário cristão e do
discurso demonológico que vai fazer parte da retórica inquisitorial, bem como,
dos discursos de religiosos envolvidos nas campanhas de Extirpação de
Idolatrias.
Método de leitura isotópica e
aplicação
A. J. Greimas utilizou o termo isotopia para definir um conjunto
redundante de categorias semânticas que torna possível a leitura uniforme do
relato, tal como resulta das leituras parciais dos enunciados que o constituem
e da resolução de suas ambigüidades, que é orientada pela busca de uma leitura
única (1970, p.188; GREIMAS,& COURTÉS, 1989, p.245-246). A isotopia
permite, então, passar-se da microssemântica à macrossemântica, ou do enunciado
ao discurso completo, bem como, o inverso (COURTÉS, 1991, p.197).
Encontrando as categorias
isotópicas de um texto distribuídas pelos três níveis semânticos do discurso -
figurativo, temático e axiológico - (CARDOSO, 1997, p.172-173) podemos realizar
a análise detalhada do mesmo.
Passaremos a examinar partes da crônica espanhola do século XVI escrita
pelo Jesuíta Anônimo, que esteve no Peru durante o período pós-conquista e que
por vezes, teve sua autoria atribuída ao jesuíta mestiço, Blas Valera, segundo
as concepções de Porras Barrenechea (1986), Urbano (1992) e Marzal (2001).
Porém, não é nosso objetivo aprofundar essa questão.
Exemplo: Conversión de los
indios piruanos a la fe católica. In: Jesuita Anónimo. Relacion de las
costumbres antiguas de los naturales
del Pirú. (1968,
p.181-189).
O manuscrito da crônica escrita pelo jesuíta anônimo, intitulado Relacion de las costumbres antiguas de los
naturales del Pirú encontra-se na Biblioteca Nacional de Madri e estima-se
que o autor tenha chegado ao Peru em 1568, não havendo uma datação definida
para a produção de tal obra (BARBA, 1968, p.XLIV).
Análise
O universo diegético do
texto redigido pelo jesuíta anônimo trata da conversão dos índios peruanos à fé
católica. O autor nos mostra que houve três maneiras de se realizar essa
tarefa. A primeira foi através da força e violência, tendo como predicadores
soldados-sacerdotes. Os índios recusaram-se a receber os sacramentos e muitos
voltaram às suas superstições e aqueles que aceitaram a catequese foi por medo
dos espanhóis. Na verdade, esses soldados-sacerdotes não estavam interessados
na conversão indígena, e sim, em satisfazer seus próprios interesses. O autor
deixa claro, que estes índios nem sequer poderiam querer seguir a doutrina
cristã, pois receberam péssimos exemplos dos espanhóis, que os corromperam.
A segunda maneira de
cristianizar foi pela vontade dos próprios indígenas, influenciados pela
bondade de algum religioso ou soldado. O máximo que lhes ensinavam era o Pai
Nosso, a Ave Maria e o Credo, pois não conheciam a língua indígena e estavam
mais preocupados com seus afazeres, sendo poucos indivíduos e que mal conheciam
a doutrina cristã. Este cronista declara que esses religiosos foram
responsáveis pelo fracasso da evangelização inicial, visto serem responsáveis
pela perda dos bons exemplos que os índios tinham. Critica o fato de tais
homens estarem apenas interessados em cobrar tributos e ensinar-lhes as leis da
Coroa, ao invés de mostrarem-lhes os ensinamentos de Cristo. Porém, mesmo
afirmando os maus exemplos dados pelos espanhóis não redime a culpa dos índios
de não terem aproveitado o bom exemplo da lei evangélica.
A terceira maneira dos
índios terem sido catequizados se deu por vontade própria e também porque estes
encontraram quem lhes predicasse a crença em Deus. Isso foi
possível, graças ao bom trabalho de alguns eclesiásticos, clérigos e regulares,
que andavam de povoado em povoado ensinando o evangelho e acabando com as
idolatrias. Estes não precisaram recorrer à força na destruição de tais ídolos
e altares, visto que os próprios índios se encarregavam dessa tarefa. A
eficácia não foi completa, pois não havia quem quisesse confessar os índios e
se o fizesse, o resultado seria negativo, visto que atendia a muitas pessoas de
uma vez e sequer era possível explicar-lhes a função da Eucaristia, da Missa e dos
Sacramentos.
Segundo o cronista, Deus
escutou os pedidos dos índios e lhes enviou em 1568 a Companhia de Jesus. A
predicação desses homens era tão eficaz, que logo inumeráveis indígenas foram
incorporados à cristandade, provando que a ineficácia da evangelização até esse
momento não era por culpa dos índios, e sim, de quem lhes havia ensinado a
palavra de Deus. O Demônio criou algumas artimanhas para impedir o trabalho da
Companhia, mas como esta era regida pelo espírito verdadeiro da igreja
católica, conseguiu transpor os obstáculos impostos por outros clérigos. O
autor desta crônica admite que houve quem tenha utilizado os convertidos para
seus propósitos, mas argumenta como prova da eficácia do trabalho da Companhia
de Jesus, que embora os índios tenham sofrido uma série de agravos e tenham
sido explorados pelos espanhóis, clérigos ou não, todos os que foram
convertidos à fé cristã pela Companhia, prosseguiram firmes em suas crenças,
apegando-se a isso para superarem as perseguições e maus tratos a que foram
submetidos.
Leitura isotópica
Selecionamos apenas algumas
pequenas partes do texto analisado, de acordo com as redes temáticas mais
significativas, devido à sua grande extensão. Poderia ser inserida uma outra
rede temática, que concerne à primeira tentativa de evangelização, porém por
estar ligada ao contexto dos maus exemplos propagados pelos espanhóis, ao
fracasso inicial de cristianização e representando a pouca eficácia nessa
função realizada pelo clero regular, resolvemos deixá-la inserida na segunda
rede temática.
Rede temática 1:
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Alguns elementos figurativos que correspondem à rede
temática 1:
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Elementos axiológicos que correspondem à rede temática 1:
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Evangelização
pela força / por vontade própria
eficaz
/ não eficaz
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“...no
Piru...” / “...predicadores eram soldados...” / “...baptizados traídos en
collera y cadena...arcabuces”. / “...volvieron a sus supersticiones...”/
“...hacia pechar y servir como esclavo...”/
“...hay granjerías de minas, de labranzas de tierras, de coca, de obrajes, de
trapiches...”/ “...hurtar y robar y hacer agravios e injurias, o el jurar,
blasfemar, renegar...”/
|
“...por
fuerza y com violencia...” / “...baptizados eran idiotas...” / “...recibieron
la gracia del baptismo...” / “...dejandose baptizar de miedo...”
“...no
pretendieron tanto que los indios fuesen cristianos o se salvasen, cuanto sus
proprios intereses y comodidades...”/ “...más corruptos fueron a una mano los
soldados y vecinos españoles...”/ “en lo que toca a la honestidad, iba tan
roto el negocio...vivian miserablemente...”/
|
Rede temática 2:
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Alguns elementos figurativos que correspondem à rede
temática 2:
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Elementos axiológicos que correspondem à rede temática 2:
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Exemplos dos espanhóis
Fracasso inicial/ falha do clero regular
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‘...con
las guerras civiles que sucedieron no se les intimó ley evangélica ni
civil...”/ “...la corrupción de los soldados españoles, el descuido de los
magistrados y la turbación de las guerras civiles...”
“...desenterraban
los difuntos, sacándolos de las iglesias y llevándolos al monte, de que
hacían sus antiguas supersticiones y sacrificios y males...” / “...en Italia
y en España no falta quien haya dejado la fe católica...”/
“...segunda
manera de cristianar indios fue de los que quisieron de su voluntad ser
cristianos...”/ “...decirles el Pater noster, Ave María y Credo en latin,
poniéndolos una cruz...”/ “...ocupados en las ciudades de españoles en fundar
casas y monasterios...”/
“...ir
a los indios...había de acudir a cuarenta y a cincuenta pueblos...”/
“...pusieron en los pueblos de los indios españoles seglares por doctrineros,
que ni sabían la lengua, ni aun la doctrina cristiana...”/ “...en muchos años
no vieron sacerdote...”/ “...el sacerdote no se quería meter en tanto trabajo;
bastábale pasar de ligero por lo pueblo y cobrar su estipendio...”/
“...edificios suptuosísimos,
monasterios, labranzas de tierra...” / “...claro es que los indios
supieron las cosas de Cristo...como saben las cosas del rey...”
“La
tercera manera de entrar los piruanos en la cristandad, fue de indios que no
solamente quisieron de su propria voluntad ser baptizados ellos y sus hijos y
sus mujeres...”/ “...andando de pueblo en pueblo, quitando la idolatría...”/
“...no tenían ellos necesidad de acudir al ídolo y quebrarlo...sino que los
mismos indios hacían pedazos e ceniza...”
“...estos
predicadores, por más de treinta años, no atendieron sino a predicar a los
naturales...eran pocos los operarios y los indios sin número...”/ “También estaban en peligro estos del
tercero modo de conversión, por la falta que había de quien los
confesase...”/ “...era lástima ver las lágrimas de los naturales que se
quejaban de que no se les enseñase el modo que a los españoles enseñaban...”
|
‘...semejantes
indios y a este modo y en tales ejemplos industriados y baptizados, fuesen
malos, llenos de vicios y de males...”/ “...habiendo de ser el ejemplo de la
virtud cristiana, fueron los más flacos y miserables...”
“...ser bestiales los indios y hacerse
bárbaros...”/ “...sean apostatas...”/
“...sabían
nuestro romance castellano muy mal...”/ “...los indios fuesen idiotas...”/
“...perdían los buenos deseos que tenían, porque nunca oían la palabra divina
que los provocase, ni vían buen ejemplo que los incitase...”
“...su
estipendio, en cuya paga estaban bien industriados...que tocan al interese o
comodidad o deleite de los españoles...”/ “...ni faltaban en los indios
habilidad y presteza de ingenio para entenderlas y comprenderlas...”/
“...fuesen tan fervorosos como los de la primitiva iglesia...”/ “...que en la
cristiandad sean flojos y no fervorosos, y que en la virtud sean inconstantes
y los buenos deseos y propósitos no perseverantes...”
“...hallaremos
en los soldados españoles y en otros que se llaman soldados, más males en un
mes, que en los indios en un año...” / “Pero no merecen estos indios por esto
excusa alguna, sino represión, pues pudieron ellos aprovecharse de lo bueno
que sentían de la ley evangélica...con ellos...”
“...no
hicieron estos religiosos y clérigos poco en darse a los indios, sino un acto
heroico y celestial...”/ “...si por mano de sus pecados algunos de sus
ministros menos fervorosos se ponía a confesarlos, mejor fuera que no lo
hiciera...”
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Rede temática 3:
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Alguns elementos figurativos que correspondem à rede
temática 2:
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Elementos axiológicos que correspondem à rede temática 3:
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Companhia de Jesus
Evangelização eficaz x artimanhas do demônio
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“Oyó
Dios las peticiones y lágrimas de los indios y envióles la Compañia de Jesus,
año de 1568.”/ “El arzobispo Don Hierónimo de Loaisa lloraba de placer cada
vez que vía los domingos y fiestas pasar por su calle procesión de indios
innumerables”
“...han
hecho la iglesia de San Blas...la utilidad y comodidad desta cofradía...”
“...han
sido los de la Compañia reprendidos porque así comunicaban estos divinos
Sacramentos a los indios...”/ “...los medios que usó la Compañia de Jesus
fueron paciencia, humildad, obediencia, caridad,...sin temer persecuciones.”
“...comenzaron
ellos a predicar a los indios y a seguir el estilo y modo de la Compañia y a
confesar a todos cuantos la doctrina de la Compañia derriababa...”
“...pena
de cient azotes y tresquile de cabellos, que no se confesasen com los dichos
padres ni oyesen palabra ninguna delles...
“...por
no ofender al Señor se han dejado matar a mano de españoles.”
|
“...no
había estado la culpa en el reló sino en el relojero...”/ “Pésole grandemente
al Demonio de tanto bien...” “...quedó buen número, que hasta ahora ha
permanecido con tanta virtud, honestidad y devoción...
“...la
Compañia, regida por el espiritu verdadero de la Iglesia católica, pasaba
adelante en su obra, con mucha prudencia y discreción...”
“...sacar
de la narración histórica apóstrofes y exclamaciones, o amorosas y tiernas,
provocativas a penitencia...para que así se olviden de los cantares
antiguos...”
“...para
más avergonzar a los de la Compañia o apartalos...había caído en pecado
alguno...”
“Visto
el Demonio que ya se habían destruido sus machinas, inventó otras...”
“...ellos
se acusaron y conocieron que no iban por buen camino...”/ “Esta devoción y
reformación no se pude probar mejor que con ver que dura hasta el día de hoy
con un mismo tesón e con tantos extremos.”/ “...los agravios y vejaciones que
reciben de mano de los magistrados mediatos...la horrible servidumbre a que
han venido...están los indios firmes en su propósito, y en medio de sus
trabajos y dolores, se abrazan con Cristo, y mientras más inconveniente y
estorbo y persecuciones, más firmeza y arraigamiento en la fe”. / “...ha
permitido que algunos españoles sirvan de perseguilos,
maltratándolos....junto con los demasiados tributos e imposiciones, para que
así sean ejercitados y se arraiguen en la fe y busquen a Dios en sus
tribulaciones y lágrimas, como lo hacen con gran ventaja y fructo.”
|
Interpretação
A crônica analisada foi
redigida no período posterior à chegada da Companhia de Jesus ao Peru, não
havendo uma data comprovada e nem autoria definida. Trata-se de uma descrição
do processo de evangelização dos índios da região, sendo que desforiza a
atuação dos primeiros clérigos para euforizar a cristianização levada a cabo
pela Companhia de Jesus.
A primeira rede temática
trata da conversão dos indígenas, tanto pela força como por vontade própria. O
autor descreve o período inicial da conquista, quando chegam os religiosos ao
Peru, que estavam mais interessados em usufruir das riquezas indígenas, do que
evangelizá-los, visto que eram homens interessados apenas em obter ganhos
econômicos. Isso se dava, porque os sacerdotes seculares eram menos valorizados
do que os regulares, transformando-se em homens ávidos por riquezas. Os que
pertenciam a Ordens religiosas chegavam em diferentes circunstâncias, pois eram
respaldados por suas Congregações (LOCKHART, 1968, p.50-56). Alguns religiosos
participaram dos combates entre almagristas e pizarristas e muitos tiveram um
fim trágico. Esse espírito guerreiro, influenciado pelas lutas de Reconquista,
fez com que houvesse pouca atividade de cristianização na época da conquista
(TELLO, 1995, p.34-37).
O relato do Jesuíta Anônimo
aqui exposto e analisado assemelha-se ao de Hernando de Santillan ao escrever
que os índios em tempos incaicos eram bons trabalhadores e sem vícios e que
depois do contato com os sacerdotes não prosseguiram com suas leis, pois
seguiram os maus exemplos destes e afastaram-se da possibilidade de receberem a
doutrina cristã (SANTILLAN, 1968, p.127). Percebe-se aqui a segunda rede
temática, que enfoca o exemplo dado pelos espanhóis aos povos indígenas, que
eram bons e foram corrompidos pelos maus ensinamentos daqueles. A dificuldade
de comunicação também prejudicou os trabalhos iniciais de predicação, mas mais
do que isso foi a exploração do trabalho indígena pelos sacerdotes, que fez com
que os índios se convertessem em inimigos da fé cristã, pois associavam a
imagem de trabalho com a mesma (SANCHEZ-BARBA, 1990, p.141-142). Depois do
fracasso inicial da evangelização, passou-se à erradicação das idolatrias[4]. O clero
regular era a favor de uma evangelização por persuasão e não pela violência (LAS CASAS, 1975 [1537]), enquanto
o clero secular defendia as extirpações. Foi nessa época que começaram as
Visitas, campanhas que tinham por objetivo extirpar idolatrias e propagar a fé
cristã.
O autor da crônica euforiza
a terceira rede temática, dando um caráter quase divino à chegada da Companhia
de Jesus ao Peru, salientando as dificuldades enfrentadas pela mesma em suas
campanhas de cristianização, devido à ação insistente do Demônio em atrapalhar
seu labor catequético. De 1610 a 1660, a extirpação de idolatrias atingiu o
apogeu e embora o cronista jesuíta não trate do assunto propriamente dito, foi
a partir de 1610, que a Companhia de Jesus começou as suas atividades de
evangelização seguindo uma política missionária indigenista e coletivista,
dominando religiosa e culturalmente o território peruano nesse período (PORTUGAL,
2001, p.55). O cronista conclui que a eficácia da cristianização feita pela Companhia
pode ser comprovada pela permanência da fé cristã entre os indígenas, que mesmo
submetidos à exploração espanhola continuaram fervorosos no amor e na crença em
Deus.
Considerações finais
O texto que acabamos de
analisar propicia não só um panorama do processo de cristianização ocorrido nos
Andes, denegrindo a participação dos primeiros religiosos nesse feito e
enaltecendo a evangelização realizada pela Companhia de Jesus, bem como,
permite aplicar a hermenêutica para entender a formação de um discurso híbrido,
gerado nas fronteiras discursivas
entre a história e a literatura.
A crônica do Jesuíta Anônimo
é uma obra historiográfica, cuja veracidade se mistura com a dimensão
literária. A interpretação da mesma permite perceber entrelugares onde dados
concretos se mesclam a fictícios para legitimar a postura defendida pelo autor.
O objetivo deste nem sempre será correspondido pela percepção do leitor, visto
que a obra fala por si, mostrando incoerências e coerências, significados e
significantes, que podem ou não resultar em uma interpretação uniforme.
No caso específico desta
obra, existem algumas incoerências relativas ao contexto histórico em que foi
elaborada, pois os indígenas, por exemplo, jamais destruíram seus próprios
templos, como afirma o autor da mesma. A alusão à participação do demônio em
atividades contrárias à catequese e outros dados fruto de sua imaginação,
mostram a aplicação da eloqüência ficcional com o intuito de persuadir o leitor
a crer na benevolência e superioridade da Companhia de Jesus no processo de
evangelização dos povos andinos.
Pudemos perceber na análise
desta crônica o entrecruzamento do imaginário cristão com os rituais indígenas,
que permeados pela retórica demonológica européia, transformaram-se em discurso
legitimador do sucesso da ação catequética jesuítica na região andina.
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[1] “Une tâche est alors prescrite: étudier le
texte philosophique dans as structure formelle, dans son organisation
rhetórique, dans sa spécifité et la diversité de ses types textuels, dans ses
modèles d’exposition et de production – au-delà de ce qu’on appelait autrefois
les genres -, dans l’espace aussi de ses mises en scène et dans une syntaxe Qui
ne soit pas seulement l’articulation de ses signifiés, de ses références à
l’être ou à la vérité, mais l’agencement de ses procédés et tout ce Qui s’y
investit. Bref, considérer aussi la philosophie comme ‘un genre littéraire
particulier’, puisant à la réserve d’une langue, aménageant, forçant ou
détournant un ensemble de ressources tropiques plus vieilles que la
philosophie” (DERRIDA, 1942, p.348).
[2] "Se alguém pergunta o que viram os Europeus ao chegarem ao
outro lado do Atlântico e como o
viram, a resposta dependerá muito do tipo de europeus de que se fala. O campo
de visão é susceptível de ser afectado quer pelos antecedentes, quer pelos
interesses profissionais. Soldados, clérigos, mercadores e funcionários
experimentados em leis são o tipo de homem de que dependemos para os primeiros
relatos da observação do Novo Mundo e dos seus habitantes. Cada classe tinha as
suas predisposições, as suas limitações..." (ELLIOTT, 1984, p.30).
[3] “Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite,
geralmente em lugares solitários, no campo ou na montanha. Às vezes, chegavam
voando, depois de ter untado o corpo com ungüentos, montando bastões ou cabos
de vassoura; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou então
transformados eles próprios em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam
renunciar à fé cristã, profanar os sacramentos e render homenagem ao diabo,
presente sob a forma humana ou (mais freqüentemente) como animal ou
semi-animal. Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes de voltar para
casa, bruxas e feiticeiros recebiam ungüentos maléficos, produzidos com gordura
de criança e outros ingredientes” (GINZBURG, 1991. p. 9).
[4] Sobre a
extirpação de idolatrias e o conceito de idolatria, ver DUVIOLS, 1986; BERNAND
& GRUZINSKI, 1992; VAINFAS, 1992.
NOTA:
Publicado originalmente em:
PORTUGAL, Ana Raquel . O JESUÍTA ANÔNIMO E A PARÓDIA DEMONÍACA. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 1, p. 187-204, 2009.
PORTUGAL, Ana Raquel . O jesuíta anônimo e a paródia demoníaca. Revista do Mestrado de História (Universidade Severino Sombra), v. 10, p. 76-92, 2008.
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