terça-feira, 20 de novembro de 2012

O LEGADO ÁRABE NO BRASIL




Mesquita do Profeta Maomé - Medina - Arábia Saudita

Este artigo é um breve estudo sobre o contexto histórico do mundo árabe em contato com a Península Ibérica, percebendo que traços foram deixados por essa cultura na Espanha e em Portugal. Partindo desse ponto, analisaremos as influências árabes trazidas pelos portugueses para o Brasil na época colonial.


Grande Mesquita - Meca - Arábia Saudita



Caaba - Meca


Breve história do mundo árabe.

   “São árabes todos aqueles para quem a missão de Maomé e a memória do Império Árabe constituem o cerne da história e que preservam a língua árabe e a sua herança cultural como patrimônio comum” (Lewis, 1982, p.14).

Antes de Muhammad ibn Abdallah, Maomé, a região arábica era uma terra de nômades com povos de origem semita. Não tinham unidade política e viviam em tribos governadas por xeques. Cada grupo venerava um deus próprio, ao qual  se rendia culto no mesmo santuário, a Caaba, que ficava em Meca. O ídolo mais importante era a “pedra negra”, sob cuja proteção encontravam-se todos os pequenos deuses tribais da Arábia.
Esses povos viviam do comércio e os principais centros da época eram Meca e Iatrib (futura Medina), sendo que a importância da primeira cresceu muito, já que além de centro comercial, era local de peregrinação de árabes.
Por volta de 570d.C. nasceu Maomé em Meca. Teve uma infância pobre, porém aos 25 anos de idade casou-se com Cadija, uma viúva rica para quem ele trabalhava.
Quando estava com 40 anos, disse ter recebido de um anjo a revelação da existência de um único deus: Alá. Os primeiros convertidos foram seus familiares e amigos, mas à medida que esse grupo foi crescendo em número, começou a ser perseguido, pois os ensinamentos de Maomé iam contra os interesses dos mercadores de Meca, a quem convinha o prosseguimento das antigas crenças religiosas que haviam feito de Meca um grande centro comercial. Devido a essa perseguição, Maomé teve que fugir.
Em 622d.C., deu-se  a hégira (migração), foi quando Maomé e seus seguidores fugiram para Iatrib, que a partir de então, passou a ser designada por Medina, a cidade do profeta. A partir da hégira iniciou-se o calendário muçulmano.
Durante o domínio de Maomé, Medina e Meca viveram dias de conflito, porém em 629d.C., ele conquistou a cidade de Meca e destruiu todos os ídolos que se encontravam na Caaba, menos a “pedra negra”. Ao morrer em 632d.C., Maomé havia conseguido unificar a Arábia, pois como nos diz Jaime Cortesão, ao pregar a religião do Islão e a guerra  santa[1] contra os infiéis, Maomé consegue elevar o seminomadismo mercantil a um ideal religioso, fazendo com que a lei e a organização do Estado tivessem por base a fé, sendo esse o elo que permitiu a união das tribos entre si. O fato de a religião estar ligada ao comércio marítimo e terrestre, também proporcionou a expansão árabe e dos povos islamizados (1984, p.61-62).
Abu Bequer sucedeu Maomé como califa e guia do povo. Depois, Omar o sucedeu e foi durante o seu califado que ocorreram as principais conquistas do Islão. O islamismo prevaleceu como ordem social e política entre esses povos de formação social semelhante ao nomadismo tribal. Seguiu-se Otman e Ali, completando o domínio dos conhecidos Califas Piedosos, que acabaram de consolidar a unificação da Arábia, conquistando a Palestina, a Síria, a Armênia, dominando o Egito e a costa da Tripolitânea e anexando a Mesopotâmia e a Pérsia.
Com a morte de Ali, assumiu Moaviá que deslocou a capital de Meca para Damasco, na Síria, e fundou a dinastia Omíada, que era sunita. Foi durante esta dinastia que o império árabe teve novamente um período de expansão, pois chegaram  à Península Ibérica e invadiram a França, sendo detidos em Poitiers por Carlos Martel, em 734d.C.
Por volta de 750d.C., a dinastia Omíada foi destronada e substituída pela Abássida que era xiita, fundada por Abul Abbas.  Durante essa dinastia, a capital foi transferida para Bagdá. Na transição da dinastia Omíada para a Abássida, um descendente Omíada, Abderramão, conseguiu escapar ao massacre e chegar à Espanha, onde fundou o emirado de Córdova em 756d.C.. No tempo de seu descendente, Abderramão III, Córdova foi elevada à condição de califado em 932d.C., que representou no Ocidente a oposição a Bagdá.
Depois dessa pequena introdução à história do povo árabe e suas conquistas territoriais, podemos entender a suma importância de sua religião, que além de promover a unificação entre os primeiros grupos tribais, garante ao longo do tempo a sua expansão e hegemonia sobre os povos por eles conquistados.


Arquitetura árabe

Povo dotado de grandes habilidades técnicas ligadas à agricultura, à indústria e à arquitetura, assim como, de notáveis conhecimentos científicos e de artes; foram os responsáveis pela introdução no mundo ocidental de muitas práticas e produtos próprios do oriente, promovendo assim, uma síntese entre as civilizações cristã e islâmica.



Presença árabe na Península Ibérica.

Segundo A. do Carmo Reis, “foi uma crise político-religiosa da monarquia visigoda que proporcionou a conquista muçulmana da Ibéria. Aconteceu que, após a morte do rei Vitiza, o Concílio elegeu o cavaleiro Rodrigo para a sucessão ao trono, escolha que não foi acatada pelos filhos do monarca defunto (...) que (...) solicitaram a ajuda árabe (1990, p.25). Então, no início do século VIII, um exército árabe chefiado pelo general Tarik invadiu a Península Ibérica e, rapidamente, se apoderou de quase todo o território, vencendo Rodrigo na Batalha de Guadalete.
Em 718d.C., os árabes já tinham conquistado quase toda a península, menos a região das Astúrias, onde ocorreu a Batalha Covadonga, que representou o início da resistência que deu origem à guerra da Reconquista[2]. Nesse período, apareceram os reinos cristãos, entre os mais importantes, Leão e Castela.
A longa presença dos árabes na Península Ibérica e a tolerância que tinham com os povos dominados, fez com que ficassem marcas que influenciaram a civilização européia na economia, na sociedade e na cultura. Eles ao dominarem, exigiam tributos, mas não incutiam sua cultura e religião, isso ocorreu naturalmente, devido ao longo convívio. Eles deixaram também, muitas palavras e expressões que enriqueceram o vocabulário espanhol e o português. Na área dos conhecimentos científicos, suas principais contribuições estavam relacionadas com a matemática, a astronomia, a náutica e a historiografia. Também foram responsáveis pela introdução de novas técnicas agrícolas, sobretudo de irrigação, e de novas culturas, como a da laranja, do limão e da amêndoa, tantas outras de importância para a economia da Europa.
Para Américo Castro, o domínio “muçulmano” contribui para o desenvolvimento da península, já para Sanchez-Albornoz, a presença islâmica impediu “de maneira trágica” a evolução da Espanha (Andrade Filho, 1989, p.11). Essas posturas antagônicas ajudam a mostrar como foi importante a presença dos árabes na península, pois, venerados ou odiados, os árabes deixaram suas marcas arraigadas por onde passaram.
No que concerne à história de reconquista cristã, é importante entender que esta tratou-se de uma “empresa coletiva em que reis, nobreza, clero e povo participaram para expulsar os mouros da Península, (...) através de rápidas incursões em território ocupado pelos árabes” (Reis, 1990, p.27).


Mesquita de Córdoba - Espanha


No século XI, o Califado de Córdova se desagregou em pequenos Reinos de Taifas, com isso enfraquecendo o Andaluz e facilitando o avanço dos reinos cristãos para o sul (Garcia, 1981, p.35). Assim, durante as campanhas de reconquista, D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, conseguiu conquistar Toledo e chegar próximo ao Tejo. Na Batalha de Zalaca, ele obteve a ajuda de D. Hugo e dos condes D. Raimundo e D. Henrique, vindos da França. Como recompensa, D. Afonso VI deu a D. Henrique o Condado Portucalense e a sua filha D. Teresa em casamento. D. Raimundo, por sua vez, casou-se com D. Urraca, a outra filha de D. Afonso VI.
O Condado passou a dever vassalagem ao rei D. Afonso VI, porém, D. Henrique desenvolveu uma política que tinha por objetivo a emancipação em relação à Coroa de Leão e Castela. Quando D. Henrique morreu, D. Teresa assumiu o poder, mas deixou descontente a nobreza, quando se uniu a Fernão Peres de Trava, fidalgo da Galiza. Como conseqüência, o Condado foi entregue ao Infante Afonso Henriques, filho de D. Teresa.
Afonso Henriques deu prosseguimento à política separatista de seu pai e não mais prestou vassalagem ao rei de Leão e Castela.
Em 1140, D. Afonso Henriques passou a intitular-se rei e começou a liderar as conquistas de novos territórios aos mouros.
   “O facto mais célebre da história dos séculos da luta contra os Mouros foi a batalha de Ourique, travada em 25 de julho de 1139, portanto no ano imediatamente anterior àquele em que D. Afonso Henriques começou a usar o título de rei...
...O facto foi um combate travado com os Mouros numa das incursões (fossados) que os cristãos frequentemente faziam por terra de mouros para apreenderem gados, escravos e outros despojos. Inesperadamente, um exército de mouros saiu-lhes ao caminho, mas os cristãos conseguiram vencê-los, apesar de grande inferioridade numérica” (Saraiva, 1986, p.55).

O interessante desse caso é que, por serem em pequeno número, os participantes da batalha atribuíram sua vitória a um milagre de Sant’Iago. Porém, devido aos futuros problemas com Castela, houve uma mudança na lenda, por volta do século XV, se menciona a intervenção de Cristo e no século XVII, a de Deus, como prova de que era, por ordem divina, que Portugal existia como emancipado. Também há controvérsias, quanto ao verdadeiro local da batalha, pois se realmente ocorreu nos campos de Ourique, que ficam no que hoje chamamos Baixo Alentejo, então fica a dúvida, se realmente Afonso Henriques teria ido tão longe, já que o ponto mais distante da fronteira era Leiria.
Camões, o grande poeta português, transformou esse fato em belas estrofes, como as que se seguem:
“Mas já o Príncipe Afonso aparelhava
O Lusitano exército ditoso,
Contra o Mouro que as terras habitava
De além do claro Tejo deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial soberbo e belicoso,
Defronte do inimigo Sarraceno,
Posto que em força e gente tão pequeno;

Em nehua outra cousa confiado,
Senão no sumo Deus que o céu regia,
Que tão pouco era o povo bautizado,
Que, pera um só, cem Mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por mais temeridade que ousadia
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que pera um cavaleiro houvesse cento”
(Camões, [19__], p.121, Canto III, Versos 42-43).

Depois desse fato, D. Afonso Henriques lutou contra D. Afonso VII de Leão, vencendo-o em Arcos de Valdevez. Assim, conseguiu a autonomia política de Portugal e na Conferência de Zamora foi reconhecida a sua realeza (1143).
Conhecido por suas conquistas, D. Afonso Henriques, com a ajuda de Cruzados, partiu para a conquista de diversos territórios em poder dos mouros. Ele conquistou Santarém e Lisboa em 1147.
   “A tomada de Lisboa lavra a acta do nascimento da nação portuguesa, até aí envolvida nos limbos da geração. O cerco afigura-se-nos como o concílio internacional, uma espécie de congresso guerreiro, em que a Europa baptiza o recém-vindo à luz da história. Criado pelos actos geradores da vontade de um homem, abrigado pela égide da Igreja, Portugal tem a existência confirmada pela sanção dos exércitos cruzados da Europa. O caráter cosmopolita da sua vida futura, da sua ulterior fisionomia política, parece ter-lhe sido desde logo imposto, como um baptismo, quando, em frente dessa piscina do Tejo, onde fundeiam duzentas naus coroadas pelos pavilhões de tantas nações da Europa, se estende o cordão do exército de flamengos, lotaríngios, alemães e ingleses” (Martins, [19__?], p.77).


Castelo dos Mouros - Sintra - Portugal

Seguiram-se as conquistas de Sintra, Almada, Palmela (1148), Alcácer do Sal (1158), Beja (1162), Évora (1165), Moura, Serpa e Juromenha (1166). Em 1185, morre D. Afonso Henriques, que foi sucedido por D. Sancho I. Este tomou aos mouros os castelos de Alvor e Albufeira e a cidade de Silves, capital do Algarve (1189).
Durante o domínio árabe no Algarve, sua capital Chelb (Silves), também chamada Chencir, foi cantada pelos poetas, amada pelos príncipes, procurada pelos comerciantes e cobiçada pelos inimigos. Silves foi a mais importante cidade do Algarve, desde a queda do Califado de Córdova.
Sucederam-se a D. Sancho I, consecutivamente, D. Afonso II, D. Sancho II e D. Afonso III, responsável pela conquista definitiva do Algarve (1249), terminando assim, as lutas entre cristãos e mouros em território nacional. Este passou a se autodenominar Rei de Portugal e dos Algarves.
Portugal surgiu como Estado Nacional em pleno século XIII, fato este, que só foi repetido por outros países no século XVI.

O legado árabe em Portugal.

  “Com raras exceções as histórias de Portugal subestimaram ou fugiram ao registro dessa poderosa contribuição do mouro à cultura do país. Mas não importa que se haja perpetrado a injustiça. Jamais se conseguirá fugir à evidência da verdade histórica. Jamais poderão se apagar das paredes centenárias de Sintra a marca indelével da cultura mourisca. Jamais poderão desfigurar a arquitetura popular do Algarve, ou fender os monumentos mais célebres de Portugal, todos eles marcados pelas mãos dos artífices mouriscos ou mesmo pôr abaixo aquela Torre de Belém, onde o mourisco se funde ao atlântico-português, como um símbolo das núpcias estilísticas” (Ornellas, [1948?], p.135).

A influência árabe em Portugal se faz notar não só na arquitetura, mas também na língua, onde certamente deixou grandes contribuições. O latim lusitânico resultou do latim vulgar trazido pelos romanos. Quando os árabes conquistaram a Península, a romanidade desapareceu temporariamente, permitindo que a cultura e os costumes dos mouros fossem assimilados, segundo Fernando Vanâncio e Peixoto da Fonseco (1985). A língua árabe passou a ser falada pela elite, que era bilíngüe, e o resto do povo continuou falando romanço, devido à influência romano-visigótica. A língua portuguesa que teve sua origem no latim vulgar e que depois se transformou em latim lusitânico, sob a influência árabe e de outras línguas, passou do romanço à língua portuguesa como tal a conhecemos hoje. Muitos dos vocábulos árabes assimilados pela língua portuguesa eram relativos a instituições jurídicas e sociais, assim como à arte bélica. Foram incorporados também, muitos termos relativos à cozinha e aos alimentos, às indústrias e ao comércio, à agricultura, às ciências e às técnicas, às artes, aos ofícios, domínios em que brilhavam, ao vestuário, animais, plantas etc (Idem, p.99 e 204).
Podemos exemplificar todas essas áreas com alguns vocábulos que se seguem:
Alcaide, alcavala, alfanje, açorda, açúcar[3], azulejo, arroba, açude, algarismo, astrolábio, mudejar, alfaiate, albornoz, alfaraz e algodão[4].
Os árabes foram responsáveis pela introdução de novas técnicas agrícolas em Portugal. A nora, o açude, as acéquias ou canais, são processos técnicos de condução e elevação de águas. Essas novas técnicas fizeram crescer a agricultura de mercado, assente nos cereais, nos legumes e outros produtos hortícolas. Os árabes popularizaram as azenhas e introduziram os moinhos de vento, adubaram as terras e serviram-se de bois na lavra. Impulsionada pelo mercado, a agricultura especializou-se e apareceram novas culturas, como a cana-de-açúcar, o algodão, o pessegueiro, o damasqueiro, a nespereira, o limoeiro, a ameixoeira, a laranjeira, a alface, a alfazema, a salsa e o melão. Desenvolveram também, a produção de azeite e a utilização do fruto, a azeitona, e no Algarve secavam e tratavam o figo como ainda hoje se faz.


Cavalo árabe

Foram também os árabes que trouxeram para a Península o cavalo árabe, conhecido entre eles por alfaraz. Porém, para a criação intensiva do gado cavalar eram necessárias terras especializadas para pastos, como os lameiros ou almargens. Era preciso também, forragem para alimentar os animais, que se constituía de cevada, luzerna ou alfafa, que acompanharam a imigração do cavalo.
Os árabes se dedicaram à indústria de armamentos, de couros e arreios. Até hoje em Trás-os-Montes, se verifica a influência da indústria de arreios, pois os cabrestos das mulas são ornados com uma estrela de seis pontas, tipicamente árabe.
No campo da fundição do ferro, ficaram as ferramentas, como o alicate, o almofate (perfurador de couro), o alferce ou picareta e a almofaça ou escova de ferro para limpar cavalos.
Na construção civil, o arquiteto é o alarife, que consegue construir um palácio sem alicerces ou andaimes. São utilizados pelo mestre alvanel (pedreiro), os tabiques, o estuque, o algeroz, os alizares, a aldraba, as argolas e os mosaicos fabricados a partir do alguergue ou barro vermelho.
No comércio hoje em dia ainda é utilizado o sistema de pesos e medidas deixado pelos mouros: arroba, alqueire e o almude. A rede comercial e de trânsito de homens e animais assentava nos armazéns, nas alfândegas e nas aduanas.
No setor administrativo, manteve-se ao longo da história de Portugal, os nomes usados pelos árabes para denominar os dirigentes municipais, como é o caso do alcalde ou alvasil e os fiscais de mercado, que eram chamados de almotacés e os das finanças régias, que eram os almoxarifes. No serviço militar, o responsável pela revista era o alardo, a sentinela era a atalaia e o oficial, o alferes.
No que diz respeito ao bem-estar, aparecem também algumas marcas árabes quando se menciona alcova, almofada, alcatifa, tapetes e porque não, também alcofa, açafate, almotolia e alguidar.
Todos os avanços técnicos coincidiram com progressos notáveis no conhecimento científico e na arte. Interessa-nos destacar o desenvolvimento da matemática e da astronomia por alguns cientistas árabes, que se refletiram nos descobrimentos marítimos, já que estes se deram em virtude de uma série de inventos que facilitaram a navegação. Os árabes desenvolveram a construção naval em Lisboa, em Alcácer do Sal e outros lugares, onde guardavam os apetrechos de navios e procediam à sua construção e reparação. A vedação dos navios era feita com alcatrão. Foram os árabes que vulgarizaram no Ocidente o uso da bússola e do leme vertical, instrumentos que muito facilitaram a aventura em alto mar.
Na arte, destacou-se a técnica de azulejaria. Palavras de Giulio Argan sobre o azulejo português:
“Estas são tradições afins na Espanha e na Itália meridional. A cerâmica é uma das heranças que a cultura islâmica, ao retirar-se, deixou sobre a costa mediterrânica. E não é pouco. A cerâmica, que intensamente decora e reveste mesmo o exterior dos edifícios é a arte com que o Oriente capta e reflete a luz solar fazendo dela a verdadeira matéria da própria arquitetura.
Os componentes da cerâmica são:
A cor, o sinal ou a imagem, a superfície vidrada. Reflectindo a luz o recorte das figuras, dos traços, dos sinais simbólicos, assim o homem restitui ao céu carregado de significado humano, a luz que vem do próprio céu.
É uma arte dos pobres, a cerâmica: feita de um pouco de terra de um pouco de cor e de fogo. Mas não é uma arte pobre, tanto mais sumptuosa à vista quanto mais simples é a sua matéria e o seu artifício. Mas é exatamente porque os materiais  são pobres que mais requintado é o esplendor da cor e do vidrado.
É quase uma vitória da riqueza da fantasia sobre a riqueza material” (Argan Apud Calado, [198_], não paginado).



Azulejo estilo mudejar - Andaluzia


Azulejo português - Ilha da Madeira


Painel de azulejo português

O azulejo é uma herança árabe que se difundiu por toda a Península Ibérica, porém seu uso foi mais marcante durante o século XV.
   “A cerâmica esmaltada ou vidrada, de revestimento parietal, foi largamente usada nas regiões da implantação muçulmana, mas só na Península Ibérica, no final da Idade Média, se desenvolveu a placa esmaltada de formato quadrado, em especial nas oficinas muçulmanas da Andaluzia, onde Portugal se abasteceu abundantemente no início do Século XVI. Esta azulejaria, chamada Hispano-Mourisca, patenteia belos ornatos relevados (de modo a impedir a mistura das várias cores), de organização geométrica (tipicamente mourisca) ou de caráter vegetal e naturalista (de inspiração renascentista).
   A partir de 1725 o azulejo modificou-se, de modo a satisfazer a grande procura, ocasionada pela afluência do ouro do Brasil, de uma sociedade que necessitava de luxo e ostentação para afirmar o seu poderio” (Meco, 1982, não paginado).

O azulejo português foi para as ruas a partir do século XVII, pois quando a família real mudou-se para o Brasil, levou consigo o hábito de revestir os interiores das construções. Porém, ao chegar ao Brasil, o azulejo passou a ter uma nova função, pois os brasileiros do século passado tiveram o feliz hábito de revestir exteriormente as suas casas de azulejos. Houve então, uma “torna viagem”, segundo o termo usado por Rafael Salinas Calado, pois o azulejo em Portugal ganhou as ruas, a exemplo brasileiro, enfeitando as fachadas do casario colonial ([198_], não paginado).


Influências árabes trazidas para o Brasil

   “Portugal era um país com uma notável infra-estrutura de construção naval, com gente habilitada para sulcar o oceano, conhecedora de instrumentos, cartografia e astrologia que havia aprendido no contato com os comerciantes e marinheiros árabes e genoveses, e na própria experiência” (Reis, 1990, p.60).

Com a descoberta do Brasil pelos portugueses se deu a passagem de costumes e técnicas orientais a estas terras. Por ter sido a Península Ibérica conquistada pelos árabes outrora, então sua influência se fez notar em todos os países colonizados pela Espanha e Portugal.
No que diz respeito ao Brasil, temos diversos autores que abordam a influência árabe na formação de diversas características presentes em meio ao povo brasileiro.
Manoelito de Ornellas, em seu livro A cruz e o alfanje,  dá uma série de dados sobre a influência oriental no Brasil, dando ênfase à arquitetura. Ele cita diversos autores que tratam em suas obras da influência árabe em diversas áreas, como é o caso de Gilberto Freyre no livro Casa grande e senzala. Ele escreve:
...”Há quem tenha por exagerada a importância por nós atribuída ao Oriente na formação da cultura que aqui se desenvolveu com a sociedade patriarcal e foi, em várias de suas formas, condicionada pelo tipo de absorvente, de organização, de economia e de política, de recreação e de arte, de religião e de assistência, de educação e de transporte - e não apenas de família, no sentido biológico da palavra, que é o patriarcal. A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns brilhos mais vistosos de cor à cultura que aqui se formou e à paisagem que aqui se compôs dentro de condições predominantemente patriarcais de convivência humana, em geral, e de exploração da terra pelo homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em particular. E não só substância e cor à cultura; o Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e servis dessa convivência entre nós; os modos hierárquicos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar”...
Ele continua:
...”O primado ibérico de cultura nunca foi, no Brasil exclusivamente europeu, mas, em grande parte, impregnado de influências mouras, árabes, israelitas, maometanas; de influências do Oriente mescladas às do Ocidente; de sobrevivências sólidas do Oriente não de todo dissolvidas nas predominâncias do Ocidente sobre Portugal ou sobre a Iberia” (Ornellas, [1948?], p.149 e 151).

Oliveira Martins também “não fugiu à confissão da imensa influência árabe sobre nossa modesta arquitetura de expressão popular, nos começos do século XIX”, conforme nos diz Manoelito de Ornellas ([1948?], p. 169).
No seu texto As origens remotas do gaúcho, Ornellas coloca que a origem do gaúcho está ligada aos árabes, mostrando assim a diversidade cultural ibérica. Ele mostra que esta região foi colonizada pelos espanhóis vindos do norte, da região chamada La Maragateria, enquanto os que colonizaram a área da Argentina, vieram do sul da Espanha. Como, segundo ele, os povos que habitavam La Maragateria eram originários do norte de África, ou seja, eram berberes, isso explica a diferença entre o gaúcho platino e o cisplatino. Para melhor exemplificar sua idéia, ele mostra que a indumentária do que hoje é o Rio Grande do Sul, está baseada nos modelos maragatos, se diferenciando assim, dos modelos usados na Argentina (1964). Castilhos Goycochêa, no seu artigo Maragatos e gaúchos da revista Província de São Pedro, também defende essa idéia de forma semelhante (1945). Pode-se perceber que existem alguns pesquisadores que além de aceitarem que houve influência árabe no período colonial brasileiro, ainda usam essa idéia para exemplificar algumas características existentes no Brasil colonial e que, por vezes, se estendem até os nossos dias.
Gilberto Freyre nos diz que “para o Brasil é provável que tenham vindo, entre os primeiros povoadores, numerosos indivíduos de origem moura e moçarabes, junto com cristãos-novos e portugueses velhos” (Freyre, 1987, p.218), mostrando assim, que as influências árabes não chegaram ao Brasil apenas por intermédio dos  portugueses.
Partindo desse fato, podemos analisar diversos aspectos referentes aos hábitos e técnicas assimiladas no Brasil, no período colonial. No que concerne às técnicas agrícolas adotadas aqui, destacamos o fato de que “o mouro forneceu ao colonizador do Brasil os elementos técnicos de produção e utilização econômica da cana” (op. cit., p.212), além de outras técnicas e culturas mouriscas.
No que se refere à língua, houve uma influência direta, pois se até o século XVIII só se falou tupi, a partir daí o português predominou em todo o território, tornando-se o maior fator de unidade na colonização do Brasil. Como a língua portuguesa tem grande influência árabe e no Brasil ela foi amplamente difundida, algumas palavras que hoje aqui são faladas não são mais utilizadas em Portugal, e talvez isso se deva ao fato de que o português falado no Brasil é o medieval[5].


Muxarabi - Balcão Mouro - Diamantina - MG
(Foto de Maurício Simonetti)

A arte brasileira tem inúmeras influências árabes, principalmente no que diz respeito à arquitetura, com o uso do muxarabi e do azulejo. A esse respeito, Gilberto Freyre declara:
   “Diversos outros valores materiais, absorvidos da cultura moura ou árabe pelos portugueses, transmitiram-se ao Brasil: a arte do azulejo, que tanto relevo tomou em nossas igrejas, conventos, residências, banheiros, bicas e chafarizes; a telha mourisca; a janela quadriculada ou em xadrez...” (op. cit., p.221)

Não podemos esquecer também da influência do mudejar no barroco americano. “O barroco na América não é uma simples transposição do espanhol ou do português. É uma arte mestiça. E não só de duas culturas, mas um legado árabe e mudéjar...” (Mix, 1987, p.38).
A mentalidade existente no Brasil colonial pode ser analisada através da família patriarcal, onde o homem tomava conta de tudo e a mulher ficava em casa e muitas vezes, restrita a apenas alguns cômodos, assemelhando-se muito ao papel da mulher árabe, que também vivia reclusa. Porém, existem discussões sobre esse assunto, pois no Brasil colonial não havia só o modelo de família patriarcal, como o que foi exposto e que era característico no nordeste brasileiro. A família paulista, por exemplo, conforme os estudos de Eni de Mesquita Samara, enquadrava-se nos moldes de família patriarcal romanos, onde a mulher vivia com maior liberdade. No sul, a mulher também tinha um papel diferenciado, pois seus maridos saiam para trabalhar e elas ficavam sozinhas em casa e responsáveis por tudo (1983).
No que se refere à religiosidade, também existem controvérsias, visto que no Brasil colonial houve a influência de diversas religiões. O messianismo que apareceu em muitos momentos da história do Brasil, não deixa de ser uma característica islâmica, assim como o é judia, pois esta influenciou diretamente o pensamento cristão. Pode-se também, cogitar o fato de que devido às grandes lutas pela Reconquista cristã, o povo português tenha se tornado mais apegado à sua religiosidade, influenciando, assim, o Brasil colonial.
Quanto à administração, foram adotados os mesmos sistemas utilizados em Portugal. A principal instituição administrativa portuguesa era e é o “concelho”, que no Brasil chamou-se município[6]. Porém, existem várias teses sobre o surgimento dessa instituição em Portugal. No livro de Humberto Baquero Moreno, ele nos apresenta a tese de Herculano, que trata da origem romana do município, que havia resistido às invasões dos povos germânicos e muçulmanos. Também a de Hinojosa, que antevia nas origens dos “concelhos” uma nítida influência dos visigodos (1986, p.11). António Borges Coelho no seu livro Comunas ou concelhos, diz que “os concelhos surgiram a norte e sul da Península, mas o terreno apresentava-se fértil no Sul muçulmano, adubado pelo desenvolvimento técnico e pela pressão social dos mercados urbanos e regionais (1986, p.167). Henrique da Gama Barros diz “que o município romano foi implantado na Península com todo o seu corpo de magistraturas” (1945, p.72) e quando se refere a Herculano, completa:
“O escriptor illustre, que principalmente seguimos n’esta matéria (...), vê (a nosso juízo com muita plausibilidade) na origem arábica dos vocábulos, que designam as magistraturas e os cargos dos concelhos em Leão e depois em Portugal, alcaide, alvasil, alcalde, almotacé (...), uma prova de que o município se manteve durante o governo dos mussulmanos” (op. cit., p.77).

Como podemos observar diversos autores concordam com a origem romana do município, mas também afirmam que este foi mantido durante o período árabe na Península, o que leva a crer que este passou por algumas transformações, ficando assim marcada a influência árabe nessa instituição, que também foi implantada no Brasil colonial.
Os dados fornecidos nesta pesquisa permitem-nos perceber que foi considerável a influência árabe legada pelos portugueses no período colonial brasileiro.
Terminada esta sucinta análise sobre o povo árabe, sua expansão e influências nas áreas conquistadas podemos concluir que existem diferentes abordagens do assunto. Alguns autores não se aprofundam em pesquisas sobre a presença árabe na Península Ibérica, preferindo dar maior ênfase à influência romana, que sem dúvida, também foi de grande importância. Porém, os árabes estiveram na península cerca de oito séculos e deixaram significativas marcas no campo cultural, econômico, político e social.
Com a chegada dos portugueses ao Brasil, grande parte da influência oriental, impregnada em seus hábitos, foi trazida para cá. Devido às diferentes condições de vida que o português encontrou aqui, essas influências orientais muitas vezes passaram por adaptações e readaptações, sendo que nem tudo foi assimilado. Podemos concluir que os hábitos e técnicas árabes aqui adotados, mesmo que não em toda a sua plenitude, tem grande representatividade.

Bibliografia

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[1] “É a guerra que todos os muçulmanos travam contra os infiéis, ou seja, todos os que ameaçam o Islamismo. Lê-se com efeito no Corão: ‘Combatei em nome de Alá aqueles que vos combatem’. A guerra santa é uma guerra pela causa de Alá” (MARSEILLE, 1990, p.10).
[2] “Expressão utilizada para nomear o processo da formação dos reinos cristãos  da Península (Garcia, 1981, p.38).
[3] “...cultivado pelos genoveses e difundido pelos árabes, foi até o século XIV um produto exótico e de luxo. Os portugueses, que o conheciam desde o século XII (...) embarateceram-no e comercializaram-no na Europa como um dos primeiros produtos no mercado capitalista para-mundial...” (SERRÃO, 1987, p.14).
[4] “Trazido do oriente, possivelmente pelos árabes (...) veio em grande parte substituir o linho, de tratamento mais moroso. O algodoeiro já era conhecido pelos portugueses aquando das viagens a África, pois era cultivado no Algarve e no Vale do Mondego. Mas, os Descobrimentos levaram-nos a encontrar entre os nativos africanos a exploração desta cultura que, tendo sido estimulada pelos mercadores do Corão vindos do Norte da África, era já objeto de um comércio relativamente desenvolvido. O seu grande valor econômico fez com que os portugueses intensificassem a sua produção, mormente nas regiões tropicais (...) e o introduzissem no Brasil...” (SERRÃO, 1987, p.41).
[5] Ver SILVA, MACHADO FILHO, 2002.
[6] “...organismo de poder e representação local surgido nas áreas de influência ibérica” (ARNHOLD, 1991, p.7).

Nota: Artigo originalmente publicado em:
PORTUGAL, Ana Raquel . O LEGADO ÁRABE NO BRASIL. Ibérica (Juiz de Fora), v. V, p. 4-21, 2011.
http://www.estudosibericos.com/arquivos/iberica16/legado-arabe-portugal.pdf

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